O Sul pode ser um país?

uma explicação desde a constituição até a resolução da ONU

Tassio Denker
Ciência Descomplicada
7 min readOct 13, 2017

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Neste último domingo, dia 07 de outubro ocorreu, na Região Sul do Brasil, um plebiscito informal com o objetivo de colher informações sobre a vontade — ou não — dos habitantes do Paraná (vulgarmente conhecida como a Russia Brasileira), Santa Catarina e do Rio Grande do Sul deixarem o Brasil para constituírem, autonomamente, um novo país.

O movimento intitulado “O Sul é meu país” também, organizou, em 2016, um plebiscito com a mesma finalidade e, tanto na consulta de 2016, quanto na consulta de 2017, o percentual dos votantes que assinalou SIM, isto, é, para a separação do Sul, foi acima dos 95%.

É importante ressaltar que se trata de uma consulta, um plebiscito informal, isto é, sem nenhuma validade jurídica. Tal iniciativa tem apenas um viés político e, obviamente, de marketing. Por tal razão, antes de adentrarmos à esfera jurídica desta questão, é importante entrarmos na esfera matemática e, neste ponto, talvez eu precise ser corrigido pelos leitores mais letrados, digo, numerados do Medium.

Vamos nos ater ao último “plebiscito”. O resultado final assinalou um percentual de 96,26% de votos “Sim”, o que nos dá um número total de 350.633 votos contra apenas 13.623 votos contrários.

Embora seja um número expressivo — e uma vitória aparentemente “esmagadora” — o Sul do Brasil, segundo uma pesquisa efetuada nesta data, dia 11 de outubro de 2017, no site da Justiça Eleitoral, possui 21.286.501 de eleitores. Mais de vinte um milhões, para os que, como eu, tem dificuldades com números muito grandes.

Vamos excluir aqui, qualquer possibilidade de alteração ou manipulação dos resultados e focar nos dados. Os mais de 350 mil votos equivalem à apenas 1,64% de todo o eleitorado do Sul do Brasil. Somando-se aos votos negativos, cerca de apenas 1,72% de todos os eleitores do Sul participaram da consulta.

É um número menor do que os que defendem a restauração da Monarquia, no Brasil. Mas você poderia até argumentar e querer validar a intenção dizendo que se trata de uma pesquisa por amostragem. Só que os votos não foram colhidos aleatoriamente nas ruas, tal qual as pesquisas de intenção de voto. As urnas estavam em locais públicos às quais as pessoas deveriam comparecer para assinalar a sua opinião. E, como não possui valor legal e muito menos era obrigatória, não é difícil perceber que praticamente só quem é à favor é que foi registrar seu voto.

Mas como a ausência de prova não é prova da ausência, vamos além e olhar, sob uma perspectiva jurídica, da real possibilidade, ao menos jurídica, desta separação vir à ocorrer.

Para começarmos, vamos ao que diz o Movimento. Em seu site, encontramos a seguinte seção, denominada carta de princípios, onde é exposto a forma à qual o movimento se organiza e, mais importante, sob quais fundamentos jurídicos a mesma se embasa para reivindicar a separação. Vejamos:

FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA: Fundamenta-se no Art. 4, item III, (Direito a autodeterminação dos povos), no Art. 5, itens IV, VII, XVI, XVII, XIX, XXI (Direito e liberdade de pensamento e direito de organização para expressar e divulgar o pensamento) da Constituição Federal e nas Resoluções das Nações Unidas especialmente na Resolução 1514 (XV).

Antes de qualquer coisa, o art.5 e os incisos mencionados ali dizem respeito à liberdade de pensamento e ao direito de organização civil, como constituir associações, por exemplo, para expressar estes pensamentos. É o respaldo legal para se organizar civilmente e expor suas manifestações políticas, culturais, artísticas, etc. É a mesma fundamentação que eu poderia usar para criar uma instituição que funcionasse como fã-clube de algum cantor, ou então para defender o neo-liberalismo.

As “coisas” começam a se revelar já quando mencionam o art.4, inciso III, da Constituição Federal, em especial a autodeterminação dos povos como elemento base da separação. Mas, sinto muito decepcionar os separatistas, tal argumento não serve. Mas vamos ver melhor o artigo 4º da Constituição e descobrir porque:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
(…)
III — autodeterminação dos povos;

Eu já negritei na própria citação para nem precisar explicar muito. O mencionado artigo diz o que ele diz. Que no âmbito INTERNACIONAL, o Brasil rege-se pelo princípio da autodeterminação dos povos. Tá, mas o que é isso?

O Google responde de imediato:

A autodeterminação dos povos é o princípio que garante a todo povo de um país o direito de se autogovernar, realizar suas escolhas sem intervenção externa, exercendo soberanamente o direito de determinar o próprio estatuto político.

O que isso quer dizer? Que, muito embora não passe de discurso, o Brasil defende a soberania e o direito da Palestina se organizar como um Estado independente, por exemplo. Ou da Síria. Acho que já deu pra entender qual é a do artigo. E o Sul do Brasil não é um país. É parte do Brasil. Se rege pelo que a Constituição diz à respeito do seu âmbito interno.

Já no que tange o âmbito interno, não precisamos ir além do primeiríssimo artigo da nossa Constituição Federal:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela u͇n͇i͇ã͇o͇ ͇i͇n͇d͇i͇s͇s͇o͇l͇ú͇v͇e͇l͇ dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I — a soberania;
II — a cidadania
III — a dignidade da pessoa humana;
IV — os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V — o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Lindo texto né? Se nosso país funcionasse cerca de 50% do que “garante” nossa Constituição, seríamos um país de Primeiro Mundo. Olha, não é por nada não, mas temos algumas das melhores leis do mundo. Nossa Constituição ou o nosso ECA que o digam. Pena que são apenas “papéis”, sonhadores e utópicos.

Voltando ao que interessa, como vocês viram, negritei novamente a parte que que nos é útil. Não tem como, né? A não ser que façam uma emenda constitucional e modifiquem aquele artigo. Ah, mas eu estava esquecendo, a grande maioria dos juristas entendem que união indissolúvel é uma cláusula pétrea, isto é, um artigo ou uma entidade jurídica que não pode ser modificada por emenda constitucional.

Aí, só com uma nova Constituição. Ou na força, na porrada, uma nova Guerra de Farrapos. Se bem que existe um tal de jeitinho brasileiro, que nada mais seria do que fazer vista grossa para este aspecto que, legalmente, é insuperável. Nisso os políticos são bons, e o STF também. Mas não creio que isso vá acontecer, pois ambos os lados tem à perder e o Brasil não se deixaria ser abandonado, assim, tão fácil.

Por fim, temos a menção à Resolução 1514 da ONU. Achei que ali teria um bom elemento jurídico pró-separação mas, ao pesquisar, qual foi minha surpresa ao ver que ela diz respeito à “Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais”. Basicamente, esta resolução está se referindo aos “países” que são subjugados, estão em uma situação de servidão, sob o status de colônia em relação à outros países. Você pode encontrar uma cópia traduzida, aqui.

Se você olhar para alguns itens da resolução de forma isolada, pode até achar que há nela respaldo para o movimento separatista, como por exemplo, o item 2:

Todos os povos tem o direito de livre determinação; em virtude desse direito, determinam livremente sua condição política e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.

No entanto, é preciso olhar para todo o preâmbulo da resolução, bem como fazer uma leitura completa do documento para percebermos que se trata de uma carta de defesa dos direitos de nações oprimidas. Mas, se isso não bastar, veja o que diz o item 6 da resolução:

Toda tentativa encaminhada a quebrar total ou parcialmente a unidade nacional e a integridade territorial de um país é incompatível com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas.

Ou seja, a própria Resolução já deixa claro que sua orientação normativa se dirige à exploração ou colonização de um país por outro, e não como substrato para a separação ou cisão de países, tal qual o Brasil, o a Catalunha, por exemplo. Aliás, ela mesma diz que qualquer tentativa que queira quebrar parcialmente a unidade nacional é incompatível com sua Carta.

E os Estados do Sul não vivem uma situação de submissão ou de colonização. São partes legítimas da União, com representantes legítimos, tanto no Senado como na Câmara dos Deputados, sem nenhum caráter de inferioridade em relação aos demais Estados.

Resumindo: não há legalmente expressa nenhuma fundamentação jurídica que autorize ou embase tal cisão.

Mas como uma norma nada mais é do que uma abstração humana e somos nós quem depositamos nossa crença (e muitas vezes as armas) em sua eficácia, não é aconselhável deixar de dizer que, se as todas leis fossem respeitadas, não haveriam hoje tantos países. Talvez seríamos todos membros do Império Romano, ou ainda seríamos Reino Unido com Portugal, ou então o Império do Brazil.

Os povos se autodeterminam, pelo bem ou pelo mal. E, exatamente por este ponto, é que não acredito que o Sul venha a se consolidar como um país, pelo menos dentro dessa nossa ordem jurídica atual. Além da legitimidade jurídica, me parece faltar legitimidade cultural, étnica e mesmo de identidade nacional. Além do que o preço à se pagar seria alto demais.

Mas como vivemos tempos sombrios e muita coisa pode acontecer, não seria prudente dizer “nunca”. Pode ser que uma intervenção militar, ou uma revolução geral se estabeleça e o Sul aproveite esse caos para se separar.

Mas, até lá, viva o Brasil, do Oiapoque ao Chuí!

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Tassio Denker
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