Transformando venenos em remédios

Andre Mazzetto
Ciência Descomplicada
5 min readMay 31, 2017

Há um princípio budista (hendoku iyaku) que nos indica como transformar venenos em remédios. No caso do budismo esta transformação é metafórica, mostrando como uma adversidade pode se tornar felicidade. Porém, a história da medicina nos mostra que venenos podem se transformar em remédios, literalmente. Há quem diga que a diferença entre o remédio e o veneno está na dose. A cafeína e a nicotina estão aí para nos mostrar como produtos com efeitos agradáveis (para alguns…eu não curto nenhum dos dois) podem se tornar venenos quando em excesso.

Nós temos usado venenos para fins bélicos há muito tempo. Da mesma forma, os venenos têm sido usados ​​para fins medicinais. Pequenas doses de ópio, mandrágora e cicuta entorpeceram a dor da cirurgia por mais de 1.000 anos. A mesma cicuta foi responsável pela morte do filósofo grego Sócrates, condenado após criticar publicamente a classe grega predominante. Um veneno é uma substância que interfere com os processos fisiológicos normais, parando ou acelerando tais processos. A mesma definição pode ser utilizada para os medicamentos. Curandeiros e cientistas têm aproveitado o poder de venenos naturais e toxinas para criar, meio sem querer no início, remédios.

De acordo com a História, o faraó Menes foi o primeiro a pesquisar venenos. Ele mantinha suas anotações em um papiro, que foi descoberto 1.500 anos depois em Luxor (Egito), onde foi encontrada uma grande lista de venenos e drogas de diversas origens. O mais interessante na verdade não era a lista dos venenos, mas sim, a dos antídotos para cada um deles.

O problema é o seguinte: para definir um antídoto temos que conhecer muito bem o veneno e a fisiologia humana. Provavelmente Menes utilizou a famosa “tentativa e erro” matando muita gente para gerar a lista. Foi só no final do século XIX e início do XX que começamos a entender melhor a medicina. A partir daí os venenos e antídotos poderiam ser testados com mais segurança. Até agora, apenas cerca de 10.000 toxinas animais foram identificadas e 1.000 destas foram estudadas em profundidade. O Brasil teve um impacto grande nesta área.

Flando em veneno…

Uma das criaturas mais míticas quando pensamos em venenos são as cobras. No século XIX, o tratamento padrão para picadas de cobra envolvia beber uísque (não é piada…apesar de parecer uma boa desculpa). É aí que o Brasil entra na jogada. Em 1920, pesquisadores brasileiros mostraram que o uísque, apesar de seu efeito anestésico, não ajudava em nada. Eles desenvolveram um método de lutar contra os efeitos do veneno empregando o próprio veneno como antídoto.

Confuso, certo? Eles estavam usando veneno para combater o veneno. Ao introduzir doses gradualmente aumentadas de veneno de cobra em cavalos, o sistema imunológico do animal produz anticorpos que combatem o veneno. Este anticorpo é então isolado do sangue do cavalo e introduzido em alguém que havia sido picado por uma cobra. O resultado? O anticorpo se uniu ao veneno e impediu que interferisse com os processos corporais normais. O Brasil acabara de criar o soro antiofídico.

O Instituto Butantan, em São Paulo, centro de referência de produção de soro no Brasil, surgiu depois de uma infestação de peste bubônica no porto de Santos. Por ali passaram grandes médicos e sanitaristas brasileiros, como Adolfo Lutz, Vital Brazil e Oswaldo Cruz. Ao mesmo tempo da peste, muitos trabalhadores rurais acabavam sofrendo acidentes com cobras, o que levou a outra linha de pesquisa. Foi quando o Instituto focou suas pesquisas em herpetologia, microbiologia e imunologia, ganhando fama no mundo todo.

O Instituto Butantan, centro e referência no Brasil.

Mas um veneno também pode ser utilizado para anular outro veneno, sem a criação de um soro. Este processo é o desenvolvimento de algo chamado de antitoxina. O primeiro a utilizar esta estratégia foi Thomas Frasier, um médico escocês, em 1870. Ele utilizou o veneno de uma planta para neutralizar o efeito de outro veneno, o do antrax. É uma estratégia perigosa, pois o excesso da antitoxina também pode matar. No fim das contas, a cura pode ser até mesmo pior do que a doença. Apesar disso, esta estratégia é utilizada até hoje. Venenos, como o de abelha e de escorpião, são comuns na medicina tradicional chinesa, usados para tratar desde coceira até epilepsia.

Se animais são fontes de venenos, plantas são fontes ainda mais poderosas. Conhecemos cerca de 400.000 espécies, muitas delas tóxicas em certo grau. Esta estratégia de produzir venenos é importante para organismos que vivem fixos e tem que produzir defesas químicas contra contra insetos e até mesmo outras plantas . Este processo que tem permitido que as plantas terrestres floresçam por cerca de 450 milhões de anos.

Além disso, a natureza também serve de inspiração para a elaboração de estratégias e medicamentos. O desenvolvimento do primeiro tratamento para a hipertensão baseou-se na compreensão de como o veneno da víbora-dos-campos (Bothrops jararaca) causa uma drástica queda da pressão arterial de sua presa. A Exanadita, princípio base de um medicamento para diabetes tipo 2, é uma versão sintética de um componente presente na saliva dos monstros de Gila, grandes lagartos venenosos. Esta substância tem propriedades semelhantes a um regulador da glicose.

O mosntro de Gila, inspirador da Exanadita, que ajuda no tratamento da diabetes tipo 2

A natureza é um grande laboratório, onde animais e plantas estão testando e desenvolvendo substâncias para sobreviver. Sempre que algum competidor melhora suas estratégias e desenvolve um veneno, o outro competidor tem duas opções: criar uma estratégia de defesa (que pode ser outro veneno) ou morrer. Para sobreviver, os organismos vão se especializando em seus ataques e defesas, mantendo o equilíbrio. Esta corrida armamentista é conhecida como a “Hipótese da Rainha Vermelha”, inspirada na frase que a Rainha disse para Alice no livro “Alice através do espelho” de Lewis Carrol:

“É preciso correr o máximo possível, para permanecermos no mesmo lugar.”

Com a modificação do ambiente, superpopulação, mudanças climáticas e outras interferências, estamos interferindo no processo evolutivo e acelerando a extinção de animais, perdendo assim oportunidades de estudar suas estratégias de vida. Entre as espécies em perigo de extinção estão 21% dos mamíferos, 30% dos anfíbios, 12% dos pássaros, 28% dos répteis e 37% dos peixes. Estas perdas podem diminuir possíveis fontes de cura para doenças humanas.

Se continuarmos neste ritmo, em um futuro próximo contaremos apenas com o budismo para transformar venenos em remédios. Apesar de ser uma importante cura psicológica, ainda precisamos de curas para o corpo para continuarmos vivos. É aquela velha frase: mente sã, corpo são. Não adianta apenas salvarmos nossa mente, precisamos também cuidar do nosso corpo, e os venenos animais e vegetais nos ajudam muito nesta missão.

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Andre Mazzetto
Ciência Descomplicada

Biólogo, um cientista que não é movido a café. Entusiasta da Ciência e da Educação. Editor e autor do blog Ciência Descomplicada.