Taken by the flow — Photo by Veronica Olivotto — Flickr

É crime, porra!

Ejaculação, pescoço e o direito penal

Tassio Denker
7 min readSep 8, 2017

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Eita mundinho louco, hein? Algumas semanas depois da absurda e incabível passeata dos supremacistas brancos, cujo tema abordei neste artigo, tivemos há apenas alguns dias (to quase pegando o timming) esse inacreditável caso do maníaco do ônibus que, com cinco passagens na polícia pelo crime de estupro, foi liberado pelo juiz para ser preso novamente, três dias depois, pela mesmíssima prática.

Pois é, senhoras e senhores, antes de tudo, preciso informá-los que o nosso código penal foi publicado em 1940. Isto significa que ele foi redigido ainda nos anos 30. As mulheres mal tinham conquistado seu direito ao voto quando a principal legislação penal, ainda vigente no Brasil, foi elaborada. De lá pra cá, já tivemos três constituições (para alguns, quatro), um novo Código Civil, dois novos Códigos de Processo Civil, dentre uma infinidade de outras leis e códigos.

Talvez não fosse necessário falar sobre o quanto a sociedade era machista àquela época (sim, eu sei que ainda é, mas acredite, era pior), só que alguns detalhes saltam aos nossos olhos de tal forma que não podemos deixar de fazer certos apontamentos, antes de falarmos um pouquinho sobre o caso do onanista compulsivo que vem atacando as mulheres nos ônibus de São Paulo.

No início dos anos 40, sabe, Getúlio Vargas, começo da segunda guerra mundial, quando Oscar Niemeyer e Dercy Gonçalvez eram ainda trintões inveterados, o Código Penal aprovado, e havia nele um título específico dentro do código penal que criminalizava algumas condutas sexuais.

Oscar Niemeyer e Dercy Gonçalves no período em que o Código Penal era novidade

Na época, esse título se chamava “Dos crimes contra os costumes”, ou seja, a legislação já deixava claro que não tinha como objetivo promover a proteção da dignidade sexual, mas tão somente hábitos e a moral, individual ou coletiva, e das avaliações que a sociedade fazia sobre eles.

Na prática — e sendo bem direto — a lei não protegia a mulher; ela protegia a a “esposa do homem”, a “filha do homem”, desde que, é claro, estas fossem “mulheres honestas”.

Os estupradores até poderiam ser processados e presos, mas para isso, vejam só vocês, as mulheres que precisariam propor a ação penal! Contratar advogado, e tudo, para tentar responsabilizar seu agressor. E o Promotor de Justiça, que atualmente é o detentor do direito de propor essas ações, somente poderia atuar no caso em que a “vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família”.

Quer mais uma prova de que o nosso código defendia mais a honra da família perante a sociedade do que das mulheres? O crime de estupro simplesmente deixava de existir se a vítima casasse com o seu agressor. Sim, você leu corretamente! No Brasil! E isso se deu até 2005! Agora, se você acredita que muitos pais obrigaram suas filhas a se casarem com os estupradores, apenas para jogarem para debaixo do tapete a desonra, a vergonha, você está completamente… certa!

Parece absurdo? Até bem pouco tempo atrás, a legislação protegia apenas a “mulher honesta” de ser, digamos, “violada” mediante fraude. Prometeu casa, comida e roupa lavada, comeu e depois sumiu. Mas pera lá: que diabos é “mulher honesta”? Outro detalhe nem um pouco machista: se ela fosse virgem, a pena do criminoso era ainda maior. Ou seja, mulher virgem valia mais para a lei que mulher não virgem!

Photo by Ira Gelb — Flickr

Tá, já deu de exemplos (olha que ainda tem mais dessa natureza). Acho que já deu pra entender que a nossa legislação é da época dos primeiros fuscas e que, sim, o mundo é redondo e os tempos são outros. Mas, mesmo com muitas mudanças e alterações fundamentais, nosso código penal ainda é arcaico. Tanto o é que permitiu que o Juiz (com a concordância do Promotor) liberassem o cidadão, enquadrando-o como contraventor penal, ao invés de criminoso.

Um parenteses: nossa legislação possui três tipos de delitos criminais: os crimes, previstos no Código Penal e em algumas leis esparsas, como a lei dos crimes de tráfico de drogas, as contravenções penais, que são delitos de baixíssimo potencial lesivo, isto é, são muito pouco graves, como o som alto do vizinho, e os atos infracionais, que são tanto os crimes quanto as contravenções penais, mas que por serem praticados pelos menores de idade, ganham esse nome chique.

Pois não é que o juiz entendeu que o que o rapaz lá fez, ejaculou sobre uma passageira do ônibus, é contravenção penal? Tão gozando com a nossa cara, digo, pescoço? Se vocês quiserem ler, na íntegra, a decisão do juiz, basta clicar aqui. O magistrado enquadrou o sujeito neste artigo aqui:

Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor:
Pena — multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

Sim, vocês leram certinho: contos de réis. Talvez a nossa legislação penal fosse um pouco mais moderna se nossos senadores e deputados estivessem menos ocupando desviando dinheiro público e lendo um pouco mais as notícias policiais nos jornais e sites. Assim eles saberiam que existem milhares de casos, todos os meses, de assédio e de violência contra as mulheres nos ônibus e metrôs do nosso Brasil. Essa vida de chofer e jatinhos particulares criou uma classe política alienada!

Um conto de réis

Se tivéssemos legisladores mais atentos, talvez teríamos impedido o Juiz e o Promotor de terem liberado o sujeito com base numa contravenção penal de 1941.

Não que estes — Juiz e Promotor — estejam totalmente isentos de culpa. Ah, não estão não. A nossa legislação é farta de artigos penais e, com um pouco de bom senso e empatia, os aplicadores do direito teriam encontrado uma solução mais justa. Só que, como eles tem como garantia legal a liberdade de interpretar e aplicar as leis conforme suas próprias consciências — o que devo ressaltar, são fundamentais e não devem ser removidas — devemos encarar mais como um erro pontual, um relapso. Todos erram, inclusive os d̶e̶u̶s̶e̶s̶ juízes.

Se o cara tivesse ficado lá, na dele, tocando uma e ejaculando na cueca ou no chão, beleza, é errado, é ilegal e é sim, contravenção, artigo 61, importunar alguém e blá blá blá.

Mas ao ejacular sobre outra pessoa, ainda mais no pescoço, uma das zonas mais erógenas do corpo, ele simplesmente consumou um ato libidinoso com essa pessoa. Ou melhor, contra essa pessoa. E, se não foi mediante violência ou grave ameaça, mas sim de surpresa, como ressaltou o próprio juiz, “s͟u͟rp͟r͟e͟e͟n͟d͟i͟d͟a͟ pela ejaculação”, é fácil concluir que ele praticou um ato libidinoso mediante um meio que impedia ou dificultava a livre manifestação da vontade da vítima. Afinal, ela teve chance de impedir ou dificultar?

Quando o legislador finalmente retirou do código penal aquela aberração da “mulher honesta”, que ele mesmo nunca definiu o que era, ele trouxe um novo artigo, que diz o seguinte:

Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:
Pena — reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

Esse texto aí em cima é novo, ou melhor dizendo, é o atual texto do Código Penal. Sua redação é de 2009. Embora não diga, expressamente, “ejacular de surpresa no pescoço de alguém”, me parece bem mais aplicável ao caso do que uma simples importunação. Ainda mais quando se trata de um sujeito com uma ficha bem sedimentada nos crimes contra a dignidade sexual.

Talvez o magistrado tenha se atido a pensar na violência física, na ameaça e na existência do contato físico direto, entre vítima e agressor. Mas a lei não impõe, em nenhum momento, a necessidade do contato físico. Ele fala simplesmente em ato libidinoso. É uma expressão aberta, suscetível de interpretação.

Agora, se ainda assim o juiz não acha libidinoso ejacular no pescoço alheio, talvez seja necessário a legislação penal ser reformulada a cada semana, com um novo artigo que venha a contemplar cada método criativo inédito desenvolvido pelos abusadores.

Na minha opinião pessoal — que não tem valor legal ou científico algum— faltou empatia ao magistrado e ao promotor, para se colocarem como uma mulher, vivenciarem a experiência à partir da ótica da vítima, e valorar a conduta do réu. Por tal razão eu acredito que se um dos dois fosse mulher (promotor ou juiz), não estaria aqui hoje escrevendo este texto.

Estou também divulgando a ciência do Direito lá no Youtube, tentando ser claro e acessível para todos os públicos. Se você quiser ver em vídeo mais sobre este assunto — ou outros, corre lá e se inscreve! Nas descrições dos vídeos você poderá encontrar toda a bibliografia e os materiais de apoio utilizadas para a elaboração do vídeo e deste artigo.

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Tassio Denker
Ciência Descomplicada

As palavras, sem cores. Preto no branco. Words, without colors. Black characters on white screen.