Como Ler um Filme

O texto que deu as bases para o nosso cineclube

Notorious (1946)

Texto originalmente publicado por Roger Ebert em 30/08/2008 em https://www.rogerebert.com/rogers-journal/how-to-read-a-movie. Tradução de Renato Tavares Puetter Mayr

mencionei algumas vezes as sessões de “um plano por vez” que realizamos em festivais de cinema e universidades, escrutinando um filme com a ajuda da plateia. A percepção destes eventos, revelada nos e-mails que recebo, é a de um exercício de origem esotérica. Na verdade, é algo que qualquer um pode fazer, sem a necessidade de qualquer conhecimento mais aprofundado, pois o público e o próprio filme são os seus colaboradores mais prestativos. É claro que uma pesquisa sobre a obra selecionada para a análise é bem-vinda, além de se conhecer os realizadores e o contexto ao seu redor, mas acredito que o processo, na sua forma mais pura, pode ser aplicado em um filme que você talvez nunca tenha ouvido falar. E quero te mostrar como.

Tudo começou por volta de 1969, quando passei a lecionar Cinema na Universidade de Chicago. Eu conheci um outro professor e crítico cinematográfico da região chamado John West, que vivia em um belo apartamento repleto de filmes, projetores, livros, pôsteres e fotografias. “Você conhece o método que treinadores de futebol-americano usam para estudar jogos gravados, com um projetor de 16mm?”, ele me perguntou uma vez. “Você pode fazer a mesma coisa para estudar Cinema, apenas pausando o filme a qualquer momento e debatendo sobre o que aparece na tela. Tente isso em uma de suas aulas.”

E eu o fiz. Os resultados superaram qualquer expectativa. Eu não era mais o professor e meus alunos não eram mais a plateia; todos estávamos juntos na experiência. As regras básicas eram: Qualquer um pode gritar “Pare!” e então começar o debate, sobre o que estamos observando ou qualquer coisa que o filme tenha despertado em sua cabeça naquele momento. Dois anos depois, quando passei a realizar essas sessões na ‘Conference of World Affairs’ na Universidade do Colorado, o fundador da conferência, Howard Higman, descreveu tal processo como “democracia no escuro”. Mais tarde ele veio com o nome Cinema Interruptus. Pode parecer difícil, mas na realidade é divertido e emocionante, quase hipnótico. Durante 30 anos na cidade de Boulder, eu encarei um filme de duas horas de duração toda as tardes ao longo das semanas, e com tempo as sessões tiveram de ser realocadas a um auditório para acomodar o público crescente, que já chegava aos milhares.

The Third Man (1949)

Algo que se revelou de início foi que, mesmo nos menores públicos, sempre há alguém que pode responder qualquer questão. Em “O Terceiro Homem” (1949), se um personagem falasse alemão, haveria na sessão alguém fluente na língua alemã. Se alguma cena requeresse conhecimentos médicos, lá estaria um(a) doutor(a). Um filme japonês exibido no Colorado apresentou em sua sessão falantes de japonês, peritos na sociedade japonesa e até pesquisadores sobre o diretor do filme. Haveria alguém que te explicasse o que uma caminhonete Ford poderia ou não fazer. Haveria rabinos, físicos, artistas, músicos. Quando a Fundação Criterion me convidou para realizar uma faixa de comentários sobre “Ervas Flutuantes” (1959), de Yasugiro Ozu, percebi que não sabia uma fração do que gente como Donald Richie ou David Bordwell conhecia sobre a obra. Como falar por duas horas sobre a estética de um filme em que cada cena é um simples plano estático? Exibi o filme em Boulder e juntos descobrimos um mar de coisas para analisar e comentar.

Ervas Flutuantes (1959)

Obviamente não se deve apenas parar o filme e comentar superficialmente sobre a imagem estática na tela. Por isso ter um conhecimento básico sobre linguagem audiovisual ajuda bastante. Quando o jornal Sun-Times me contratou como crítico cinematográfico, eu não havia presenciado uma única aula de Cinema (a Universidade de Illinois não possuía tal curso até então). Um dos motivos que me levou a dar aulas de Cinema foi o desejo de aprender Cinema. Assista uma dúzia de filmes New Wave e você acaba conhecendo mais sobre o movimento. O mesmo vale para o Cinema Mudo, Documentários, o trabalho de diretores específicos, etc…

Também comprei alguns livros de extrema valia. O maior de todos foi o “Understanding Movies”(1972) de Louis Giannetti. Foi nele onde fui apresentado ao conceito de que toda composição visual teria um “valor intrínseco”. Isto é, que o preenchimento de certas áreas no espaço visual tende a provocar reações estéticas ou emocionais no observador. Isso não quer dizer que haja uma “Lei” na composição visual. “Seguir” esse conceito é tão frívolo quanto “violá-lo”. Eu nunca conheci um(a) realizador(a) que tenha empregado isso conscientemente. Eu acredito que eles compõem cenas e tomadas a partir de imagens que provoquem emoções, instintiva ou estrategicamente, da mesma maneira que bons pianistas nunca deliberam sobre cada nota em particular. É provável que esse valor intrínseco seja algo inato, ainda que eu não seja qualquer especialista na área. Eu posso afirmar, porém, que já assisti a pelo menos 10 filmes de Alfred Hitchcock e jamais encontrei uma única cena que não caísse nesse conceito.

Eu já tinha ouvido falar sobre a Proporção Áurea e a Regra dos Terços. Em resumo e por exemplo: um elemento à direita do centro de um quadro numa composição visual estaria idealmente localizado. Nesta posição ele aparenta ser mais “positivo”. À esquerda, parece mais “negativo”. Um elemento centralizado seria objetificado, como um retrato de cadeia. Eu costumo chamar a composição “positiva”, à direita do centro, de “eixo forte”.

Agora, a que exatamente me refiro com “positivo” ou “negativo”? Estou falando de tendências de composição visual. Elas não são absolutas. Mas em termos gerais, em um plano com dois elementos, o destacado à direita parecerá “dominante” sobre o elemento à esquerda. Isso se aplica até em culturas com costumes completamente diferentes de escrita e leitura, vide meus passeios pelo cinema asiático.

Citizen Kane (1941)

E há muitas outras “regras” como esta. Eu devo listá-las por alto, e se te interessar você pode examiná-las da próxima vez que assistir a um filme, ou ler sobre isso em livros como os de Giannetti ou David Bordwell (ambos usados frequentemente como livros didáticos). Eles não devem usar os mesmos termos que eu, e também não almejo dizer que eles sequer concordariam comigo; estou apenas somando tudo o que aprendi ao longo de centenas de sessões de “um plano por vez” ao longo de todos esses anos. Ao mesmo tempo, eles escrutinam o Cinema com a mesma intensa curiosidade, e isso que é importante. Por exemplo, Bordwell – que, em seu grande livro sobre Ozu, conta com diversos painéis com frames individuais para ilustrar o trabalho de um diretor que basicamente nunca movia sua câmera, mas ainda assim contava com composições que ganhavam vida com pura estratégia visual.

Em termos simples: Direta é Positivo, Esquerda é Negativo. Um movimento para a Direita parece mais adequado; para a Esquerda, nem tanto. O futuro parece avançar para a Direita e deixar o passado para a Esquerda. O Topo é sempre dominante sobre o Ponto Baixo. O Próximo é mais forte que o Fundo. Composições Simétricas parecem mais tranquilas. Linhas Diagonais numa composição parecem apontar para o ângulo mais agudo de sua forma, ainda que elas talvez nem se movam para início de conversa. Quando se movem, em um contexto mais arrojado, uma composição visual poderia nos guiar até um Fundo que se torna dominante sobre um elemento Próximo, e etc… Tomadas Inclinadas forçam linhas mais diagonais, indicando um desbalanço no ambiente. Tenho a impressão também de que a maioria das tomadas Inclinadas o fazem mais para a direita do que para a esquerda, talvez sugerindo que os personagens estão rastejando lentamente em direção ao futuro, seu destino. Inclinações à esquerda, para mim, sugerem desamparo, tristeza, desistência. Poucas tomadas Inclinadas são utilizadas para ilustrar emoções positivas. Movimento é dominante sobre elementos imóveis. Uma tomada em Ponto-de-Vista partindo de cima da linha dos olhos de outro personagem o inferioriza; abaixo de sua linha dos olhos, o realça. Ângulos muito acima dos personagens os tornam impotentes; ângulos muito abaixo os transformam em deuses. Áreas mais claras tendem a dominar áreas mais escuras, mas nem sempre. Às vezes, é tão eficaz ir contra as “regras” de valor intrínseco quanto segui-las.

Tomemos como exemplo uma única tomada do filme “Interlúdio” (1946), de Alfred Hitchcock. A situação é a seguinte: Cary Grant, um agente norte-americano, se apaixona por Ingrid Bergman, a filha de um espião nazista. Ele a recruta para se disfarçar e seduzir um nazista interpretado por Claude Rains, que fugiu para o Rio de Janeiro e é parte importante da trama. Entenda que ele essencialmente coíbe a mulher que ama para que ela viva (e durma) com outro homem, em um dever patriótico. Ele se sente dividido com a situação, se arrepende, sente ciúmes, passa a achar que seu amor é infiel.

No escritório carioca de espionagem americana, o chefe de Grant é posicionado no Eixo Forte. Grant entra na sala e conversa com o chefe, de pé, à Direita do centro (Positivo). Bergman então entra e começa a discutir a sua relação com o nazista. Enquanto ela discursa, Grant caminha para a Esquerda da composição. Ela continua o discurso. Ele vira de costas para nós. Instintivamente lemos isso como algo Negativo/Rejeição/Raiva. Bergman então começa a entrar em detalhes. Grant caminha em direção ao extremo Fundo do cenário. Agora a composição é composta pelo Chefe de inteligência como a presença estável no Eixo Forte, Bergman localizada no mais Próximo, à Direita do centro, enquanto Grant se esconde no Fundo, à Esquerda. Isso tudo é obtido após um movimento do personagem partindo da Direita Próxima para a Esquerda ao Fundo, acentuando a jornada emocional do próprio filme, nos informando sobre o interior da mente do personagem de Cary Grant e dando pistas sobre o seu comportamento no resto do filme.

Novamente, isso tudo é apenas uma coleção de tendências, nada absoluto, e como eu já disse, podem funcionar tão bem sendo desrespeitadas do que seguidas à risca. Pense no valor intrínseco como um processo que garante total liberdade no uso da área de composição visual, mas que também funciona como um elástico invisível que cria tensões e pontos de interesse quando esticado. Nunca cometa o erro de pensar nesse conceito como algo absoluto, objetivo. Ele existe no reino das “tendências emocionais”.

Você e aqueles que decidirem se juntar nessa empreitada discutirão o significado do uso de Cor, Luz, Sombra, Cenário, Personagens, Diálogos, Atuações, História, Fontes, Influências e Mensagens, tanto as óbvias quanto as mais ocultas. Tudo e qualquer coisa. É de fato uma democracia no escuro. Qualquer coisa que possua algum valor será logo detectada por alguém. Por exemplo, eu já tinha encarado “Cidadão Kane”(1941) pelo menos 30 vezes desde que comecei a exibi-lo no Savannah Film Festival, e da última vez alguém citou um detalhe que eu nunca tinha visto até então.

Agora é com você. DVDs facilitam bastante todo o processo. Não seja doutrinário e confie no seu público.

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