Ônibus 174 – telejornalismo ou documentário?
“Ônibus 174” retrata um sequestro cometido por Sandro Nascimento em 12 de junho de 2000. Na obra dirigida por José Padilha, cenas gravadas pelas câmeras da CET-RIO e por cinegrafistas que cobriam o acontecimento para grandes emissoras foram somadas à depoimentos e imagens de arquivo. Além disso, conta com takes aéreos das paisagens do Rio de Janeiro, trazendo à narrativa a contradição entre a beleza natural da “Cidade Maravilhosa” e a realidade vivida pelas diversas camadas sociais nela presentes. Em sua obra, Padilha conclui com êxito o desafio de unir gravações feitas para telejornais com as de depoimentos, majoritariamente, em primeiro plano seguindo um formato muito presente em documentários.
Assim como muitos brasileiros, o diretor assistiu às cenas do sequestro sendo transmitidas ao vivo pelos telejornais, mas foi só ao assistir One Day in September, sobre um ataque palestino durante os Jogos Olímpicos de 1972, que veio a ideia de transformar o fato carioca em filme. Todo o processo já havia sido gravado pelos cinegrafistas presentes na cena do crime. Por isso, era preciso acrescentar elementos inéditos à história para transformá-la em um filme. Dentro de um campo amplo de opções, entre elas a ficção — dirigida posteriormente por Bruno Barreto em “Última Parada 174”, José Padilha escolheu criar um documentário jornalístico por acreditar na importância de ressaltar o contexto por trás da ação criminosa.
“Quis fazer o filme por acreditar que a história do Sandro era importante, por pensar que ela escancara a forma como o Estado brasileiro lida com os meninos de rua e os delinquentes juvenis, um processo que, a meu ver, gera violência. Documentários são filmes que pretendem representar ocorrências do mundo objetivo através da linguagem cinematográfica e com verossimilhança. Muitas vezes, para isso, o documentarista precisa realizar pesquisas de forma a construir sua narração de acordo com os fatos que pretende representar. Ou seja, a palavra documentário já implica uma preocupação com a apuração da verdade. ” (José Padilha em entrevista para O Estado de S. Paulo em 2002.)
A apuração da verdade citada pelo diretor não está limitada apenas aos depoimentos dos reféns. Ela se estende à história de Sandro, à realidade dos meninos de rua e até mesmo às limitações da polícia. A partir de tais verdades, o sequestro da linha 174 (Central — Gávea) da empresa Amigos Unidos deixa de ser apenas mais um episódio violento na história da cidade para se transformar em objeto de análise social.
Pesquisar a fundo a história completa do sequestrador foi essencial para a construção da narrativa atravessada por fatos jornalísticos. O assassinato de sua mãe foi o primeiro deles. Em seguida, somos apresentados à realidade das ruas através do depoimento de Cláudia e Claudete, ex-moradoras de rua e amigas de Sandro. Foi mostrado o lado da cidade socialmente ignorado pela mídia, pela sociedade dando assim visibilidade para a situação. A história registrada pelo jornalismo volta a se fazer presente quando a Cachina da Candelária é abordada. O evento, assim como o sequestro, é o mesmo já visto por todos nos telejornais, porém, o objetivo e ponto de vista abordados por Padilha são diferentes, o que “rejuvenesce” o fato. Enquanto as notícias, no geral, levariam o telespectador a questionar subjetivamente qual crime as crianças haviam cometido para morrer de forma tão brutal, o que interessa ao diretor do filme é acrescentar mais um motivo para as atitudes violentas que Sandro teria posteriormente, evidenciar a covardia sofrida pelo lado mais fraco. Isso pôde ser feito por não ter a obrigação de manter certa imparcialidade como a ética jornalística exige.
O formato utilizado para construção do universo penitenciário não segue uma estrutura típica de documentários, e sim a de matérias jornalísticas especiais, próxima a programas como Globo Repórter. As câmeras estão presentes para ilustrar o que está sendo falado, mostram superficialmente como é a realidade dentro do Instituto Padre Severino Escola João Luís Alves. Não cabe a elas colher depoimentos dos meninos ali detidos, envolver o espectador por completo naquela realidade e sim manter o foco no arco central, apenas adicionando uma nova localidade à narrativa. A experiência de Sandro dentro do instituto é contada por documentos de arquivo, depoimentos de Julieta e complementada, atuando como forma de validar tudo que estava sendo visto e dito por outros, através da fala de Rogerinho, amigo e ex-morador de rua que também havia passado pelo centro de reclusão.
O papel da mídia não se fez presente apenas no material fornecido para o diretor. Durante o sequestro, ela, junto com os curiosos que ali paravam para acompanhar, interferiu no acontecimento como um todo. De acordo com relatos de reféns, o bandido sentia-se pressionado com a presença de câmeras e tinha a percepção pessimista de uma tentativa de fuga. Já a polícia se viu impedida de agir de acordo com o protocolo, visando evitar a transmissão de cenas fortes de violência. Não foi apenas a falta de treinamento e de equipamento qualificados que estendeu a duração do sequestro.
Todos os fatos acima citados e outros presentes no filme e aqui não mencionados, tiveram embasamento de profissionais da área, como assistentes sociais e sociólogos para explicar mais detalhadamente o que estava sendo mostrado. A intenção disso não era subestimar o público, e sim garantir total entendimento do foco do diretor: mostrar o problema social pelo lado escondido pela mídia. Mostrar a realidade das ruas sem o julgamento sofrido por seus moradores no dia a dia. A contextualização de Sandro do Nascimento dentro de uma esfera maior abriu espaço para colocá-lo como vítima inicial do processo, sem justificar o seu último crime. Dando ao bandido a oportunidade de ser visto por novos pontos de vista.
O silêncio durante os créditos une fatores televisivos e cinematográficos, pois pode ser interpretado tanto como a forma de luto dos telejornais ao noticiarem mortes quanto o elemento utilizado no cinema para despertar alguma emoção no espectador.
Não há uma disputa de espaço entre o telejornalismo e o cinema. Ambos atuam em conjunto para a formação da obra. Sem os fatos históricos registrados pelo jornalismo e sem as cenas do crime gravadas por emissoras não haveria a possibilidade de recontar o fato com tanta riqueza de detalhes. Já o cinema agrega à notícia informações importantes para a compreensão não só do crime como também da sociedade em si. Ressalta-se ainda a possível estabilidade do documentário “Ônibus 174” durante o tempo, pois estará sempre associado, cumprindo a função de estender o debate e a reflexão sobre o episódio toda vez que o mesmo for relembrado.