A construção da personagem no documentário ‘Amy’

Hilton De Souza Marques
cinecríticauff
Published in
3 min readNov 11, 2017

Quando foi receber o Oscar de Melhor Documentário em 2016 Asif Kapadia comemorou que o documentário era sobre a verdadeira Amy Winehouse, não uma personagem que os tablóides londrinos construíram. Uma Amy inteligente, engraçada e uma menina que precisava de cuidados.

O documentário, lançado em 2015, utiliza de muitos arquivos de vídeo para contar a trajetória da cantora criada em Southgate, subúrbio ao norte de Londres, de pais separados, a mãe uma enfermeira e o pai taxista apaixonado por jazz. Com vídeos amadores, o documentário começa mostrando Amy e sua propensão às artes, em suas performances no palco participando de peças na escola e cantando com as amigas em aniversários.

A reviravolta da vida pacata e de classe média se dá no momento que ela se muda para Candem Town e conhece Blake Fielder-Civil, por quem Amy se apaixona intensamente. Blake, por sua vez, volta para sua ex namorada e deixa Amy desolada e com material para suas canções. ‘Back to Black’ foi escrita nesse período e a cantora se tornou um sucesso mundial, vendendo milhões de cópias de seus discos. As atenções todas se voltaram à cantora com estilo musical próprio, seu cabelo estilo bolo de noiva, suas tatuagens, maquiagem dos anos 60 e seu timbre de voz contralto característico.

Ao contrário do que Asif parece achar sobre a função e o objetivo de um documentário, ele também constrói uma personagem. Amy Winehouse é exposta no filme pelo ponto de vista dos amigos, familiares e colegas com quem já trabalhou por meio de seus depoimentos íntimos. A construção da persona Amy Winehouse é feita no documentário por meio de uma edição gentil e condescendente com os problemas que Amy estava passando, assim como os famigerados tabloides fizeram, explorando seus problemas com drogas e sua atitude, por vezes, agressiva.

Essa construção da persona Amy ligada a família e cheia de amor leva em consideração os dilemas que a sensível cantora enfrentava com drogas pesadas e bebidas, além de ter que lidar com reconhecimento meteórico que parece, em vários momentos do documentário, despretensioso, alcançado com apenas dois discos de estúdio lançados e com pouco mais de 20 anos de idade. Sua morte, um dos momentos mais tristes para os fãs e familiares da cantora e explorado de forma emotiva por outros documentários, é tratado com simpatia e respeito pela privacidade da família e de forma ao mesmo tempo comiserado e discreto, sem alardes, moralismos e didatismos desnecessários.

O maior legado que uma cantora pode deixar são suas músicas e a forma como conecta as pessoas e o sentimento que ela imprime ao seu trabalho, com letras sensíveis e a contribuição que uma artista pode deixar às artes. O documentário, ao mesmo tempo que reconhece isso (seria quase impossível não fazê-lo), não centra na importância da Amy Winehouse, mas na menina branca judia do subúrbio de Londres com voz negra que gostava de cantar e não pensava que um dia isso pudesse se tornar algo profissional.

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