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7 min readNov 13, 2017

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A Corrente do Mal (2014) — Retrato de um futuro sombrio

Com um orçamento de U$ 2 milhões e faturamento de U$ 160 milhões só nos Estados Unidos, Corrente do Mal (It Follows, 2014) foi um sucesso comercial e acabou se transformando em um dos trabalhos mais elogiados e premiados do ano, além de sua indicação no Festival de Cannes de 2014. Dirigido por David Robert Mitchell, a película conta a história de uma jovem que é perseguida por entidade sobrenatural transmitida sexualmente.

A história é simples e sem grandes mistérios para desvendar: Jay (Maika Monroe) vive a típica rotina protegida de subúrbio americano, como visto depois, na cidade de Detroit; após ter relações sexuais com um garoto novo na cidade, descobre que ele era perseguido e seria morto por uma criatura se não transasse com outra pessoa e passasse o mal adiante. Já o monstro é uma espécie de maldição que se manifesta fisicamente no mundo real, mas só é visível para aqueles que estão “infectados”. Essa “Coisa” persegue uma pessoa por vez e, só quando consegue matá-la, volta a perseguir a vítima anterior, sempre andando em sua direção lenta e incessantemente. A vítima pode se esconder e fugir o quanto quiser, mas a “Coisa” nunca irá parar até que o destrua ou a maldição seja “transferida” para outra pessoa. O ritmo com que a perseguição ocorre acaba sendo mais torturante do que o desfecho; “você pode fugir, mas não vai escapar”, fazendo suas vítimas ficarem paranoicas com todo mundo ao seu redor.

Primeiramente, a falta de informação sobre o que está acontecendo e a história contada nos detalhes é uma das qualidades do filme. Na maioria dos filmes de horror, os personagens dispõem de algum elemento que os ajuda a compreender e combater o inimigo; uma pessoa que já passou pela mesma situação, um livro antigo, um relato na internet. Aqui, não existe qualquer indício de onde a “Coisa” veio, do que ela seja e muito menos de como destruí-la. E não há interesse por essa busca ao mesmo tempo em que trabalha com a dualidade de ocorrências que não podem ser explicadas por leis incidem na incerteza de ser real ou imaginário. A presença da entidade está citada, sentida pela protagonista, ao mesmo tempo em que é colocada em cheque pelos demais. À medida que a ação se desenrola, essa certeza vai se intensificando até que tenha o seu desfeche. Essa “Coisa” remonta a filmes clássicos, como Dr. Mabuse (1934, Lang) ou até O Enigma do Outro Mundo (1982, Carpenter) onde o verdadeiro medo está no que não se vê ou que no que se pensa ter visto: o Mal não centrado numa monstruosidade, mas indeterminado, mutante e que se dissemina de forma viral. O assassino que, apesar do passo inalterado, está sempre encostado à sua vítima, é utilizado com eficácia nos planos abertos e simétricos com que ele fotografa os subúrbios e os distende no formato widescreen e de forma como o diretor dispõe de elementos imprevistos que entram em cena ao fundo ou pelos cantos da tela antes que os personagens possam detectá-los. De fato, as imagens são espetaculares, passado principalmente de dia, em locais abertos, com enquadramentos, composições e iluminação inteligentes, sem a necessidade de sustos fáceis ou barulhos de portas rangendo, o filme extrai o medo da simples existência de pessoas ao redor; da desconfiança de todos, em todos os lugares. Indivíduos tornam-se agressores em potencial, relembrando o clássico Vampiros de Almas (1954, Siegel)

E não é de hoje que o cinema de horror explora a paranoia com o sexo e sua descoberta, explorando a culpa dos adolescentes, preenchendo a tela com mortes e perseguições, todavia, a sutileza com que o tema é tratado faz do filme algo diferente. Diferentemente dos clássicos com essa temática — O Massacre da Serra Elétrica (1974), Halloween (1978), Sexta-feira 13 (1980) — muito pouco é realmente mostrado. O foco fica na tensão que sua existência provoca; no estresse de se sentir observado e caçado, utilizando de um ritmo lento e edição não apelativa com poucas imagens gráficas de violência ou sangue. Os planos, em sua maioria, são abertos, colocando os personagens em imensos espaços abertos, onde o perigo pode vir de qualquer lado. Ao mesmo tempo, existe certo voyeurismo, já que constantemente os personagens observam e são observados através de janelas. O estilo voyeurístico, empregado na câmera e em seus zooms para nos envolver com a trama e criar um clima de tensão e no uso de câmeras subjetivas que faz com que o espectador também não tem certeza do que ou quem está vendo o quê, nos coloca no mesmo clima de incerteza e medo que seus personagens estão passando.

Outra coisa interessante é que o filme se passa em um microcosmo adolescente, ou seja, em um universo limitado à vida dos jovens, no qual os adultos, sempre ausentes, não tem qualquer influência direta nos acontecimentos, o que é intencional. Os adultos estão quase sempre ausentes das imagens, sugerindo um mundo de pais fracassados, que abandonaram o lar ou não mantêm vínculos afetivos com os filhos. A principal manifestação da influência adulta na vida dos personagens acontece com a própria “Coisa”, que assume a forma de entes familiares, de forma a ressaltar ainda mais o abandono dessa geração. E os próprios jovens são igualmente melancólicos, tanto em seus empregos mal pagos quanto nas raras práticas de lazer à disposição, retratando seu tédio com sutileza.

Como segundo elemento importante no roteiro e propositalmente disposto de forma bem delicada, é o papel da mulher na estrutura do horror. Historicamente tratado como centro nevrálgico das pulsões violentas e de seus espetáculos sanguinários, o corpo da mulher é um local de disputa e embate discursivo; espaço esse normalmente representativo de desejos, libidos, repulsas, ambiguidades, transformando-o também em objeto de estranhamento nesse gênero de cinema. É uma mistura de espetacularização de vitimização feminina e exposição da mulher como objeto de um olhar masculino. No geral, o destino dessas personagens eram a destruição, a extrema violência e o esfacelamento sem ter a contrapartida de serem desenvolvidas e identificáveis frente ao público. Nesse ponto, uma coisa notável sobre o filme é que ele gira em torno das relações sexuais sem nunca ser explícito. As cenas de sexo são contidas e recatadas. Pior: o ato sexual se torna uma violência quando a vítima sabe que está passando a “maldição” ao parceiro. E como lidar com essa responsabilidade?

Pessoas amaldiçoadas podem passar adiante a maldição? Caberia uma infinidade de metáforas com relação à vida em sociedade, relacionamentos, doenças venéreas, etc.. Mas as cenas de sexo são frias e mecânicas, o que nos leva a vários subtextos existentes, uma analogia possível sobre o fim da inocência de caráter mais social. O fato de a trama se passar em Detroit e aos poucos passar pela cidade é fundamental para entender aonde o filme quer chegar: símbolo da prosperidade no Pós-guerra, hoje é uma paisagem desolada pela crise econômica. Nesse ambiente, a “Coisa” persegue incansavelmente, como uma desesperança de uma América esfacelada, sem futuro para esses jovens. O medo não está mais nos sustos, mas na sensação de que a ordem natural das coisas foi alterada e não há como restabelecê-la. E com isso, é cada um por si, não importa o mal que se passe para o outro — o individualismo em seu pior momento. Jay sabe que pode transferir a perseguição para outra vítima: basta fazer sexo com ela; hesita, porque isso equivaleria a condenar um inocente da mesma forma como ela foi condenada. Mesmo assim o filme indica que ela o faz, na cena do lago… apesar de sua inutilidade.

Estamos em um cenário de crise, não apenas financeira, e sim de valores, de afetos, da noção de comunidade. O mal sexualmente transmissível evidencia o individualismo do país: é preciso pensar em si e passar adiante, nada mais. Por isso mesmo, não existe sexo por prazer ou euforia — as cenas de jovens transando são marcadas pela incômoda sensação de vazio. O autor trata de tornar esses momentos universais, focando as fachadas das casas de subúrbio de classe média, sugerindo que, dentro destas casas, existem outros jovens, outros pais ausentes. Esta é uma nação de indivíduos tristes. Jay pode transar com outras pessoas e condená-las à morte: neste caso, ela deveria transar com quem ama, ou com alguém que detesta? A moral cristã prega o sexo pelo amor e pela reprodução, mas a maldição indica o sexo como sina. Ela deve simplesmente ter relações aleatórias com qualquer pessoa? A que ponto ela deve se degradar e desprezar seu próximo para se sentir salva?

Esteticamente, para entender que o medo está no intangível, no indefinível, o diretor trabalha com planos abertos e em widescreen. O filme faz uma crítica social com a oposição entre o subúrbio das classes médias com a cidade em ruínas e habitada por desempregados e miseráveis. A fotografia banhada de luz demarca o sonho americano de subúrbio, os travelings laterais e zooms tentam gerar angústia, gravidade, principalmente numa Detroit arrasada e silenciosa — este é um horror em que ninguém grita e nem sequer fala alto; na solidão dos personagens. É uma solidão nas ruas vazias da Detroit fustigada pela falência econômica, a sensação de enlouquecimento dos que veem aquilo que os outros não enxergam o peso insuportável de decidir sobre a própria vida e a de outros. Quase não há sustos, há apenas a inexorabilidade do mal, do pesadelo, da ameaça que não se identifica nem tem propósito, que mina a força de cada um até o clímax do filem quando Jay e seu amigo apaixonado Paul transam num momento de máximo desespero, sob a coberta com as cores da bandeira norte-americana bastante desbotada. Ao termino, ambos se questionam se alguma coisa mudou e, para triste constatação, nada havia mudado em decorrência dessa relação. Na sequencia, ambos, aparecem andando de mãos dadas em mais um caminho da cidade, com a “Coisa” em seu encalço. Uma triste perspectiva de futuro desse país.

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