A Criada: sobre amor, sensualidade e a libertação

Carolina Zanatta
cinecríticauff
3 min readJan 8, 2018

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O mais recente filme de Park Chan-wook critica o masculino e exalta o feminino

Releitura do romance “Fingersmith”, do ícone da literatura LGBT, Sarah Walters, A Criada (KR, 2016) é muito mais do que um drama romântico de Park Chan-wook: é um símbolo varguardista do cinema sul-coreano. Embebido em erotismos e em plot twists, o filme narra com maestria a história de resistência e de amor de duas mulheres na conservadora Coreia dos anos 30.

Durante a ocupação japonesa, Sook-hee (Kim Tae-ri) é contratada para ser criada de Hideko (Kim Min-hee), uma jovem herdeira que vive uma solitária vida ao lado de seu tio controlador. Sook-hee, no entanto, guarda um segredo: Fujiwara (Há Jung-woo), um vigarista inescrupuloso, a recrutara para ajudá-lo a convencer Hideko a casar-se com ele. Após o casamento, Fujiwara ficaria com a herança, Sook-hee, com as joias da herdeira, e Hideko seria internada em um manicômio. O plano, no entanto, toma outros rumos, de maioria inesperada, quando as duas moças se apaixonam.

Em “A Criada”, até mesmo o espectador é constantemente vítima de enganos. A narrativa dúbia e os enquadramentos tendenciosos mostram com maestria a fragilidade da lealdade nas alianças firmadas ao longo do filme. As figuras masculinas representam a maior parte da desonestidade, e a narração dividida em três dá ao thriller um clima maior de instabilidade e mistério. Em meio a consecutivas traições, apenas uma relação se mostra verdadeira e intransponível: a de Hideko com sua companheira, Sook-hee.

Os homens do filme, o falsário e o tio, são, para Hideko, um impedimento à sua libertação. Do início ao fim, tentam subjugá-la aos seus desejos espúrios e reduzi-la a uma figura frágil e dependente. O feminino e o masculino, na vida real, constantemente exercem papeis e posições extremamente desiguais, o que inviabiliza qualquer tipo de relação equilibrada e igualitária. Na película, portanto, não é diferente: somente com Sook-hee, também mulher e, consequentemente, também vítima da percepção sexista do mundo, Hideko consegue estabelecer um laço verdadeiramente libertário. Unidas, as duas conseguem ultrapassar quaisquer obstáculos. Unidas, conseguem fugir de um ambiente repreendedor e hostil.

Durante todo o percurso da narrativa, a sensação de exploração feminina pelo masculino toma conta do espectador. Se há um homem na cena, há desconforto. Os momentos em que Hideko aparece lendo os contos eróticos que seu tio a obriga a ler são, portanto, angustiantes, e a angústia em assisti-los aumenta ainda mais quando descobrimos que sua exposição aos livros teve início durante sua infância. Criar repulsa por todo e qualquer personagem masculino acaba sendo inevitável, uma vez que todos eles estão ali somente na finalidade de sexualizar, inferiorizar e repreender.

A película tem em sua essência o erotismo. É de se esperar, portanto, que fetiches façam parte das cenas de sexo entre as duas personagens protagonistas. Apesar de bastante criticado pelo male gaze, “A Criada”, em comparação ao “Azul é a Cor Mais Quente” (FRA, 2013), outro renomado filme sobre romance entre duas jovens mulheres, não faz da sexualidade de Hideko e Sook-hee pornografia. A obra, é claro, por vezes erotiza a relação sexual lésbica de modo desnecessário; no entanto, isso não a desqualifica de sua posição de vanguarda. “A Criada” é, sobretudo, um filme de liberdade em meio a uma indústria cinematográfica extremamente conservadora.

Após tantas surpresas e tantas inconstâncias, o desfecho do filme traz a redenção ao espectador e às protagonistas. Park Chan-wook denuncia muito bem em seu enredo a questão dos desníveis sociais existentes entre as figuras feminina e masculina e, diferentemente das outras produções do diretor sul-coreano, “A Criada” trabalha a crueldade humana com sutileza. A obra é sensual, envolvente, crítica e surpreendente, sendo indubitavelmente um dos melhores e mais vanguardistas romances da última década.

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