“A Frente Fria Que a Chuva Traz” — ou “White People Problems”

Rachel
cinecríticauff
Published in
5 min readNov 23, 2017

Como é o rosto da classe alta carioca?

Adaptação para os cinemas da peça homônima de Mário Bortolotto, A Frente Fria Que a Chuva Traz é um filme recheado de globais que se propõe a mostrar a realidade de um grupo de jovens ricos do Rio de Janeiro que encontram no morro do Vidigal um espaço pra satisfazer seus fetiches. Lançado em 2016, é o primeiro trabalho do diretor Neville d’Almeida (Os Sete Gatinhos, Rio Babilônia e Navalha na Carne) em mais de uma década, e conta com grandes nomes como Johnny Massaro, Chay Suede e Bruna Linzmeyer.

Com clara glamourização e romantização da vida em favela, o grupo de jovens — que parece ter saído diretamente da PUC Rio — , aluga a laje de Gru (Flávio Bauraqui) no alto do Vidigal para suas festas regadas a álcool, sexo e drogas. O motivo é quase que uma piada pronta: cansaram das festas em seus condomínios de luxo da zona sul do Rio. Usufruindo de seus privilégios e de tudo mais que o dinheiro possa comprar, o grupo branco de classe alta usa a favela como meio de distinção e aproveita de seu “exotismo” (com todas as problemáticas que o termo carrega) para tornar suas festas mais alternativas e cool. O filme é carregado de cenas onde o contraste entre as classes se faz óbvio— como o playboy Espeto, personagem de Chay Suede, subindo o morro com um carro de luxo e roupas de marca, como quem visita um safari.

Essa não é uma realidade distante. A fetichização da pobreza e da vida em favela por classes privilegiadas é algo comum no Rio de Janeiro, onde existem festas inspiradas em bailes funk e na cultura negra (como a “Meu Black É Assim”, que já causou polêmica no Facebook) frequentadas quase que majoritariamente por um público branco elitizado. No entanto, por mais real que a premissa do filme seja, sua representação na tela não parece natural.

Os diálogos artificiais e temas abordados exageradamente fazem com que Neville pareça nunca ter conversado com adolescentes ou jovens adultos na vida. A presença da sexualidade e o uso de álcool e drogas, por exemplo, são retratados de forma caricata, estereotipada e infantil — ultrapassam a ideia de futilidade do jovem rico que o filme tenta passar e chegam a causar mal-estar no espectador.

Os personagens, por sua vez, carecem de camadas e de personalidades individuais bem definidas. São apresentados ao público como patricinhas e playboys que usam do dinheiro da família para se divertir de forma “rebelde” e assim permanecem até o fim da trama, onde toda tentativa de humanização e complexificação é rasa e parece boba e nenhum tipo de character development acontece. Uma das tentativas de complexificação dos personagens é em uma conversa entre três meninas no banheiro, dividindo um cigarro após uma tentativa de estupro a uma delas — que foi, por sinal, uma escolha problemática de roteiro, ao vilanizar o homem negro periférico em relação à mulher branca, rica e frágil. Nessa conversa, Bia (Nathália Limaverde) se compara a Amsterdã (Bruna Linzmeyer), única personagem pobre do núcleo de jovens da laje, contando como superou seu passado supostamente sofrido sem se afundar nas drogas e se vitimizar, como acusa Amsterdã de fazer. O passado sofrido, no entanto, é o de uma jovem que abriu um brechó que não foi bem sucedido …e seguiu sendo sustentada pelos pais. Tudo parece muito raso, quase como se os personagens de Malhação recebessem permissão para falar abertamente sobre sexo e drogas, mas com os mesmos problemas da novela das 18h.

É a síntese dos “white people problems”, onde todos os personagens são maquiados para fingir densidade, mas nada de realmente interessante é explorado ao longo do filme.

O filme vale, afinal, pela personagem de Linzmeyer que, junto a Johnny Massaro, apresenta uma atuação impecável. Amsterdã frequenta as festas no Vidigal ciente de não pertencer àquele grupo. Pobre e viciada, realiza favores sexuais em troca das drogas que não possui dinheiro para comprar, mesmo que isso signifique conviver com os ricos fúteis a quem tanto detesta. Seu nome é como um karma. Esse comportamento é normalizado nas festas quando seu parceiro/traficante do momento é interpretado por Chay Suede — jovem, de boa aparência e repleto de bom humor. Seu momento de clareza chega quando, em um ato de desespero, oferece sexo oral a um homem na rua — que aparenta ter seus 40 anos — em troca de dinheiro. Após ser abusada verbalmente por ele, que age com violência durante o ato que a personagem se mostra claramente desconfortável em fazer, Amsterdã morde (!) seu pênis e foge de seu carro. Voltando à festa, visivelmente drogada, performa uma das cenas mais fortes do filme: obriga os demais personagens a prenderem sua atenção em um monólogo sobre a falsidade e futilidade do meio em que vive e da cidade do Rio de Janeiro, numa sequência que deixa o espectador preso na tela e angustiado, já que a personagem a todo momento ameaça se suicidar, estando a beira de pular o muro da laje.

Os diálogos grosseiros (e até racistas) dos adolescentes, entre si e com os outros — o locador da laje, Gru, e o segurança contratado (interpretado pelo próprio Mário Bortolotto), por exemplo —, tornam difícil a identificação do espectador com a trama, causando desconforto em acreditar que os jovens na vida real sejam daquela forma. A Frente Fria Que a Chuva Traz se propõe a passar reflexões sobre juventude e classe, mas falha ao apresentar uma narrativa fraca sobre adolescentes que parecem apenas repetir estereótipos, tornando o filme desinteressante de se assistir em diversos momentos. Com um elenco de peso e talento, cria expectativas que não é capaz de cumprir, apesar da boa atuação. Linzmeyer, Massaro, Suede e Flávio Bauraqui são melhor aproveitados em outras histórias.

--

--