A iconicidade de Brokeback Mountain na história LGBT do cinema

O impacto de um dos filmes mais emblemáticos da representatividade gay no cinema mainstream

Anticristo Vegan
cinecríticauff
6 min readOct 22, 2017

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Jake Gyllenhaal, à esquerda, Heath Ledger, à direita interpretando respectivamente Jack Twist e Ennis Del Mar. Fotografia: Kimberly French/AP

Adaptado de um conto escrito e publicado por Annie Proulx em 1997 no jornal The New Yorker, oito anos antecedentes ao lançamento do filme de nome homônimo, Brokeback Mountain (no Brasil, O Segredo de Brokeback Mountain) tem como ambientação o estado de Wyoming, costa oeste dos Estados Unidos, e conta a dramática história de dois jovens cowboys, Jack Twist (Jake Gyllenhaal) e Ennis Del Mar (Heath Ledger), que se conhecem em 1963 ao serem contratados por um rancheiro para tomar conta de seu rebanho e, desde então, passam a desenvolver uma tensa relação amorosa.

"Love is a force of nature"

Desde seu primeiro lançamento, em setembro de 2005, Brokeback Mountain tem se configurado como um grande símbolo de visibilidade minoritária dentro da indústria cinematográfica. Não por menos, muito se é creditado ao filme pelo seu papel epicêntrico de representatividade ao ter apresentado, pela primeira vez na história do cinema, a temática gay e suas problemáticas como protagonista ao olhar de diferentes públicos do espectro mainstream, dentro de um amplo contexto que já vinha sendo edificado desde os anos de 1990 com o crescimento da cena de filmes independentes com temáticas centrais LGBT, em um fenômeno que envolvia um requerente engajamento político e social — em contrapartida às típicas representações caricatas da figura homossexual — , intitulado pela acadêmica B. Ruby Rich de “New Queer Cinema”.

Indo além de sua construção narrativa, o filme trabalha com uma forte agregação de elementos simbólicos e apelativos típicos da cultura popular norte-americana, só que tudo abordado e adaptado ao ponto de vista de um casal homossexual: a figura do cowboy; o cenário dos relevos montanhosos do oeste estadunidense; as mudanças repentinas na rústica trilha sonora em cenas de apelo emocional; o flerte com os excessos típicos das representações melodramáticas em cenas de amor e desavenças entre os personagens, e alguns dos tabus do qual o gênero em si se apropria: o amor extraconjugal, proibido e quase impossível de ser concretizado. Estes fatores foram, sem dúvidas, centrais na construção de seu grande apelo público apresentado na época, conseguindo driblar alguns obstáculos que poderiam vir a boicotar o sucesso mundial do filme devido forte intolerância com o qual o tema é frequentemente submetido.

Fora de sua temática não há grandes inovações, ambiguidades ou inquietações a se atribuir ao enredo do longa. O filme se apropria das fórmulas características principais dos romances dramáticos de Hollywood, o que se é percebido logo em seu início ao sermos introduzidos aos personagens de Jake e Heath: a tensão nos movimentos; as tímidas trocas de olhares; a ausência de falas; todos esses elementos muito já familiarizados não só ao gênero em si, mas também à grande parcela dos espectadores, seja pelo meio televisivo ou pelo formato construído dentro do próprio cinema. Tudo isto ainda mais acentuado pela já proximidade com um elenco formado por atores que frequentemente dialogam com as massas através de outras famosas produções, tendo além dos já conhecidos protagonistas, a presença das marcantes Anne Hathaway e Michelle Williams.

Mesmo contando com essa forte mímese de modelagem fílmica (não à toa o poster promocional do filme é inspirado na capa de Titanic), muito se deve atribuir à obra por ter desenvolvido um importante papel na ressignificação dos padrões iconográficos criados e estabelecidos pelos filmes de western hollywoodianos, visto sua quebra com a representação do arquétipo “John Wayne”, mostrando um lado mais sensível e humanizado da figura do cowboy, assim nunca antes retratado. O passo dado torna-se ainda mais ousado considerando a forte interseção com a temática do filme, sendo bastante influente dentro do contexto de adaptação e modernização das abordagens clássicas surgidas com as obras de velho oeste — não à toa o filme é frequentemente carimbado sobre o epíteto de "western gay contemporâneo", mesmo com forte contestação do diretor em relação à certa falta de intencionalidade.

Para muito além das belas e certeiras interpretações, o filme tem uma proposta técnica extremamente empolgante e envolvente: desde a montagem, à estruturação cenográfica e uma atraente direção fotográfica — que capturam e traçam uma singela intercalação entre os personagens e os planos secundários de fauna e flora local — , à interessante construção dos figurinos em diálogo com as temporalidades do filme, que vão situando, junto de outros elementos, não só as marcas das diferentes épocas, mas como tais vão afetando e tensionando drasticamente as relações entre o casal. Todos esses componentes contribuem para a edificação de uma elaborada atmosfera bucólica e escapista transmitida às telas, aguçando o apreciamento estético das paletas de cores, e acentuando a de fato fictícia "montanha Brokeback" como cenário ideal para a história e identidade do filme.

Arrecando na época um total de 178 milhões de dólares, o impacto do filme não ficou apenas nas bilheterias. O longa de Ang Lee recebeu diversos outros prêmios, entre eles o Leão de Ouro no Festival de Veneza, prêmios de melhor filme e direção no Globo de Ouro, no BAFTA e no Independent Spirit Awards, além do reconhecimento de diversas outras organizações e festivais. Em 2006, recebeu o maior número de indicações ao Oscar do ano, entre elas na categoria principal de “melhor filme”, sendo umas das grandes apostas. Mesmo com esse grande favoritismo do público e da crítica especializada, o filme não levou a estatueta na 78º edição do Oscar, perdendo para Crash — No Limite, o que em nada mudou seu protagonismo na noite da premiação ao arrecadar o total de 3 estatuetas ("melhor direção", "melhor roteiro adaptado" e "melhor trilha-sonora"), dentre o total de oito indicações que concorria.

Até mesmo após todo o barulho causado na época, o filme continuou levantando questões e causando controvérsias quando, em 2008, ao ser exibido pela rede televisiva estatal italiana Rai 2, teve suas cenas de sexo e afeto entre o casal censuradas sob a justificativa de tratar-se de uma “versão para horário nobre”. Após muita pressão do público e de ativistas LGBT, as cenas foram reexibidas em seu formato original.

Com o passar dos anos, os debates levantados pelo filme e seu papel na indústria tem apenas se reconfigurado e tomado outras proporções. Em 2017, com a vitória de Moonlight na 89º cerimônia do Oscar na categoria principal de "melhor filme", — o qual toma passos de representatividade bem mais ousados que vão além do que se pode ser observado e absorvido de Brokeback Mountain — , podemos perceber como se faz importante que não haja uma inquietude nos meios artísticos em relação às abordagens e representações minoritárias da sociedade que ainda são grande alvo de preconceito, — tendo este se apresentado de forma cada vez mais sutil em suas manifestações — , acentuando o papel do cinema na construção de signos culturais de visibilidade e no engajamento social e político em demonstrar, sob diferentes pontos de vistas, configurações semelhantes de se contar uma história ignoradas por aqueles que evitam ou temem pensar o mundo fora da construção hegemônica de estrutura e expressão social (como é o caso da heteronormatividade, interseccionada em ambos os filmes) as quais ou não estão inseridos ou simplesmente fazem pouco caso a empatizar.

Poster promocional do filme.

Ficha Técnica

Nome: O segredo de Brokeback Mountain

Duração: 134 min.
Ano: 2005 (2006, no Brasil)

Elenco: Heath Ledger, Jake Gyllenhaal, Anne Hathaway e Michelle Williams

Direção: Ang Lee
Roteiro: Larry McMurtry e Diana Ossana
Produção: Diana Ossana e James Schamus

Fotografia: Rodrigo Pietro

Trilha Sonora: Gustavo Santaolalla

© Focus Features

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