Black Mirror S03E06: Hated in the Nation

Vic Freitas
cinecríticauff
Published in
3 min readNov 27, 2017

A ação devastadora do avanço tecnológico na sociedade é um tópico amplamente explorado pela indústria do entretenimento desde o século XIX. Primeiro na literatura, quando Mary Shelley escreveu “Frankenstein: or the Modern Prometheus” em 1818 e, posteriormente, no cinema com “Le Voyage dans la lune” a adaptação cinematográfica de dois romances populares em 1902: ‘Da Terra à Lua”, de Júlio Verne e “Os Primeiros Homens na Lua”, de H. G. Wells. Hoje, os monstros aterrorizantes ou alienígenas ameaçadores que outrora alimentavam o gênero de ficção científica encontraram um competidor à altura: a tecnologia.

Black Mirror é uma série britânica que teve seu primeiro episódio exibido na emissora Channel 4, em 2011. Após ser adicionada ao catálogo mundial da Netflix, a produção ganhou notoriedade entre os críticos e um grande número de fãs, o que fez com que a própria companhia de streaming americana a renovasse para mais uma temporada, em 2016. A série funciona em um esquema episódico onde cada capítulo se desenvolve de maneira independente dos demais, experimentando com a linguagem narrativa de diversos gêneros tais como o drama, suspense e terror, a produção nos insere, a cada novo episódio, em um novo cenário, com novos personagens e histórias, mantendo apenas como constante a desesperadora influência da tecnologia nas relações interpessoais.

Em “Hated in the Nation”, o último e mais longo episódio da terceira temporada, conhecemos a detetive Karin Parke — interpretada por Kelly MacDonald com seu marcante sotaque escocês — e sua aprendiz, Blue Colson. As personalidades antagonizadas de nossas duas protagonistas criam uma dinâmica interessante e complexa. De um lado temos uma policial experiente e cética, do outro, uma detetive recém-chegada a esse mundo da investigação tradicional, com uma curiosidade e senso de justiça ainda não contaminados pela monotonia do trabalho cotidiano.

A história se passa num mundo onde as abelhas foram extintas, mas suas versões robóticas, dentre outras funções menos nobres, realizam o trabalho de polinização e mantêm o equilíbrio ambiental no planeta. O sentimento de otimismo acaba depois que acontecem uma série de mortes ligadas hashtag #DeathTo. Então é apenas uma questão de tempo para que os pontos se conectem.

Em 90 minutos Black Mirror atinge um momento narrativo que consegue ser ao mesmo tempo renovador e clássico. Seguindo a linha do suspense investigativo, a narrativa segue todos as convenções esperadas do gênero: o conflito entre novos parceiros de trabalho é um ponto chave de tensão na narrativa, mas logo é deixado de lado, sendo ofuscado pela perseguição da justiça. Uma vez que o trabalho em equipe se prova mais eficiente e ambos aprendem a conviver com as diferenças, a experiência traumática vivenciada pelos personagens os torna mais próximos do que nunca. Um clichê é um clichê por um motivo: ele funciona.

“I didn’t expect to find myself living in the future, but here I fucking well am.”

Apesar de ter se mantido numa zona confortável no que diz respeito à estrutura narrativa, o episódio não falha em assombrar quem quer que esteja do outro lado da tela. O mundo estranhamente familiar criado por Charlie Brooker nos incomoda porque toca sem piedade nas feridas recém-abertas na contemporaneidade. A obra dialoga diretamente com anseios muito reais, que vão desde a preocupação com a iminente extinção das abelhas, passando por discussões sobre moralidade, até a versar sobre assuntos como a individualidade e a vigilância onisciente das grandes corporações e governos. Por tudo isso esse talvez seja um dos episódios de Black Mirror que mais dialoga com a nossa realidade. E talvez também um dos menos sutis.

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