Entre a beleza e o horror

Carolina Zanatta
cinecríticauff

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Cisne Negro questiona: quais os limites da conexão entre arte e artista?

Num ambiente de beleza e delicadeza, Aronofsky apresenta o horror. Em Cisne Negro (EUA, 2011), thriller psicológico embebido na peça “O Lago dos Cisnes”, do ilustre compositor russo Tchaicovsky, o diretor norte-americano trabalha de maneira dualista as múltiplas facetas do perfeccionismo e da conversão de artista em arte, fazendo do mais belo balé um terror arrepiante.

Sob o cenário do subúrbio nova-iorquino, vive Nina, dedicada solista vivida pela sempre excepcional Natalie Portman. Nina, para surpresa de todos, e até mesmo dela própria, entra como substituta de Beth, a bailarina aposentada de Winona Ryder, no protagonismo da peça de abertura da temporada de inverno, “O Lago dos Cisnes”. Para exercer o papel com a excelência desempenhada pela sua antecessora, a frágil jovem precisa ser capaz de dar vida a duas personagens essencialmente opostas: ao cisne branco, recatado e virginal, e ao cisne negro, espontâneo e luxurioso. A ave branca, de pureza e frigidez substancial, é indubitavelmente ideal à solista de Portman. O desafio, portanto, está na encarnação da ave negra, e é nesse processo que Aronofsky firma as raízes do horror que abrange a película em sua íntegra.

Se o balé costuma representar a leveza, na produção de Darren, a caracterização da dança é bastante subversiva. A atmosfera de terror é majoritariamente embasada na insegurança e na confusão que o peso do perfeccionismo causa na frágil protagonista. A cobrança pela perfeição surge de todos os lados: da mãe, que exige dela a doçura e a pureza comumente exigida pela sociedade; de Thomas, que demanda as características que a jovem aprendeu a esconder, como luxúria e espontaneidade; e dela mesma, que deseja transcender e ascender como artista. Eventualmente as muitas exigências levam Nina a loucura e, a partir daí, a paranoia se torna uma constante no filme.

A insanidade toma forma numa estética impressionista submersa à dicotomia entre o preto e o branco. Assim como em Réquiem para um Sonho (EUA, 2001), outro prestigiado terror psicológico do diretor norte-americano, os elementos visuais são primordiais para manutenção da atmosfera aterrorizante. Em Cisne Negro, o diálogo existente entre figurino e fotografia pode eventualmente trazer a sensação de previsibilidade, mas a consequente conexão entre as cores de cada cisne e suas respectivas características é fundamental à mensagem que Aronofsky deseja passar.

O terror da obra está, também, bastante presente nas relações interpessoais da protagonista, principalmente em seu relacionamento com sua mãe, Erica (Barbara Hershey). A figura materna de Cisne Negro é tão psicologicamente abusiva e dependente quanto a de Réquiem para um Sonho. Frustrada pelo fim de sua carreira, Erica depositou em Nina todas suas expectativas e sonhos de vida. A busca incessante pela perfeição, portanto, estava presente desde o berço. Infantilizada e controlada pela mãe, a bailarina se vê abraçada por uma relação doentia que, em vez de salvá-la, só a submete ainda mais à insanidade.

O gancho metalinguístico entre a peça de Tchaicovsky e a película de Aronofsky é fundamental ao roteiro. Ao longo de toda a trama, as duas obras conversam, misturando realidade com ficção e, consequentemente, aterrorizando ainda mais o espectador. Thomas funciona em simultâneo como príncipe e feiticeiro, ao passo que Lily, a sensual solista interpretada por Mila Kunis, tem seu papel comparável ao de cisne negro. As similaridades entre filme e peça dão profundidade à narrativa, promovendo grandiloquência ao enredo.

O verdadeiro terror não precisa de muito para assustar. Assim como em Babadook (2014, AUS), outro formidável filme do gênero, Cisne Negro pouco utiliza mecanismos genéricos do cinema do horror (como os manjados jump scares, por exemplo). A película é assustadora em sua essência: as cores assustam, o ambiente assusta, o tema assusta e, é claro, as atuações assustam. Até mesmo a trilha sonora, fundamentalmente baseada na original peça de Tchaicovsky, auxilia na perpetuação da atmosfera aterrorizante. Com uma temática bastante atemporal e estética de tom impressionista, a obra é excelente em seu conjunto, demonstrando, portanto, que é possível, sim, um filme de terror ser refinado, instigante e profundo.

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