O avassalador “Dançando no Escuro” (2000), de Lars Von Trier.

Caio Leão
cinecríticauff
Published in
4 min readNov 13, 2017

O mega filme “Dançando no Escuro” foi lançado há 17 anos atrás e continua sendo uma das obras mais memoráveis da carreira do diretor Lars Von Trier. Co-produzido por 13 países e com um elenco excepcional formado por Bjork, Catherine Deneuve, David Morse, Peter Stormare, Joel Grey, Vincent Paterson e Cara Seymour, a trama transmite uma mensagem infeliz e verdadeira sobre a vida, inundada de um realismo surpreendente.

A história se passa nos Estados Unidos durante a década de 60 e narra a vida de Selma, uma imigrante tcheca e mãe solteira que trabalha incansavelmente numa fábrica. A jovem mãe de Gene, de apenas 12 anos, reparte suas energias em cuidar de seu trailer alugado, seu trabalho numa metalúrgica e seus ensaios musicais no teatro, paixão que a move em seu dia-a-dia. Inclusive, é sonhando alto com os musicais hollywoodianos que a protagonista foge do grande drama de sua vida: uma doença hereditária degenerativa, que lhe causa uma cegueira consumidora e progressiva.

Ciente de sua condição de saúde e cada vez mais cega, Selma luta por sua dignidade dia e noite sem baixar a guarda ou incorporar o papel de “mocinha indefesa” de muitos filmes melodramáticos. Pelo contrário, em nenhum momento ela usa destas condições limitadoras para que as pessoas a sua volta sintam pena dela, lutando diariamente para superar tais barreiras e proporcionar um futuro diferente ao filho. Em meio a tantas frustrações e dificuldades que cruzam sua vida, a personagem mostra-se uma mulher frágil, sensível e determinada a fazer tudo o que for preciso por Gene.

Um importante fator em “Dançando no Escuro” é a trilha sonora construída. Cuidadosamente criada e pensada para lincar com cada sequência ou ruído, as músicas são responsáveis por aumentar em altos níveis a carga emocional das cenas, capazes de projetar sentimentos de confusão, indignação e profunda tristeza no espectador. Todas compostas por Bjork, as canções atuam no filme como poesias que flutuam nas cenas em que são executadas. Com absoluta certeza, é coerente dizer que as principais marcas do melodrama neste filme se constroem na linha tênue que separa a excêntrica Bjork de Selma e em suas canções interpretadas no filme.

Cabe aos takes musicais o nosso transporte para as alucinações da protagonista, momentos esses marcados por serem os únicos em que notamos a felicidade cínica dos musicais. Contudo, em contraste com obras como “A Noviça Rebelde” ou clássicos de Walt Disney, neste musical a forma como as músicas são produzidas e apresentadas não nos descolam totalmente da realidade, mesmo em meio a danças e corpos coreografados. A explicação para isto está no movimento Dogma 95, criado em 1995 pelos cineastas dinamarqueses Thomas Vinterberg e Lars Von Trier.

Com a intenção de incentivar a criação de um cinema mais realista e menos comercial, o manifesto era defendido como um um ato de resgate do cinema como feito antes da exploração industrial de Hollywood. Seguindo tais “mandamentos” criados no manifesto, Lars consegue criar uma personagem que valoriza cada segundo de sua vida, responsável por brincar em meio às mazelas da vida, sem aceitar o estereótipo da pobre coitada que implora pela pena dos que estão a sua volta.

Sonhadora e honesta em todos os momentos, a personagem principal deste filme ilustra aquela pequena parcela da população que é capaz de abrir mão de tudo (literalmente) em prol do próximo. A jovem mãe responde por seus atos perante a justiça, amigos e sociedade, sendo condenada e crucificada por todos a sua volta. Porém, nenhuma das condenações chegam perto da intensidade de seu autojulgamento culpabilizante, responsável por mover seus dias e ações ao longo de todo o filme.

Intenso, profundo e chocante. Em “Dançando no Escuro” você é levado(a) à uma montanha-russa de emoções, onde a cada “descida” em meio às tristezas e amarguras da vida de Selma, ficamos incertos de emergir a bons dias novamente juntos a personagem. Sem mais delongas: trata-se de um filme esplêndido e que desenvolve com maestria as características do melodrama, sabendo sempre quando fugir e revisitar tais aspectos.

--

--

Caio Leão
cinecríticauff

Apaixonado por cultura pop, arte e entretenimento.