O dia mais feliz da vida de Olli Mäki

Lucas dos Reis Tiago Pereira
cinecríticauff

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O primeiro plano de O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki inicia em um fade-in de um sujeito abrindo uma porta com violência, enquanto é acompanhado por uma câmera na mão em um corredor estreito. Logo descobre-se que é Olli Mäki e este pequeno caminho é um princípio da grande jornada que estará prestes a realizar. Mäki é um padeiro de Kokkola, uma pequena cidade da gelada Finlândia, que atua como pugilista em um clube local. De uma hora para outra, vê sua vida mudar radicalmente ao ter a oportunidade de enfrentar o campeão mundial dos pesos-moscas em uma grande arena de Helsinque, capital do país. O lutador se torna a figura de um espetáculo midiático, algo incomum no país escandinavo, e necessita dar tudo de si para aproveitar a chance que — supostamente — não só irá mudar sua vida, como também transformar o esporte em seu país.

Trata-se, antes de tudo, de um filme de boxe, e esses filmes podem ser considerados um gênero ou um subgênero no cinema. Grandes diretores já se debruçaram sobre o tema e construíram personagens importantes que ficaram marcados no inconsciente dos espectadores. Claro que tratar de gêneros fílmicos sempre será um tema difícil, pois para fundamentar uma construção genérica não há uma definição clara. É possível considerar desde ambientes de produção até a forma de distribuição para o público e uma outra série de variações. O fato é que uma grande quantidade obras, somada a um tema que gera interesse universal, faz dos filmes que tematizam o boxe um conjunto à parte que vale a pena ser resgatado como um corpo fílmico constituído de uma unidade.

Como um filme de gênero, esta produção finlandesa carrega consigo certas regras: a maior oportunidade da carreira de um boxeador, por exemplo, é um arquétipo dessas narrativas, do qual O Vencedor (2010), de David O. Russell, é outro representante contemporâneo. Além de apresentar a grande luta da carreira de um pugilista, os dois trabalhos carregam outro traço em comum: a produção de um documentário sobre seus protagonistas. Cria-se uma narrativa em mise — en — abysme para registrar “a realidade” dos lutadores. É como se os atuais filmes de boxe buscassem entender de onde parte a força motriz do gênero desde seus primórdios. Pode-se dizer, ainda, que tal força surge dos conflitos internos e dificuldades dos boxeadores diante dos momentos importantes da luta e o que a precede.

A trajetória de Olli Mäki irá apresentar todos os tipos de percalços até chegar o grande confronto. Fade-outs que produzem pequenas pausas são como finais de rounds que interrompem por instantes novos momentos de violência e apreensão. Não é o ringue que se parece com a vida, mas o oposto, a vida que se parece com o ringue. No arco dramático, ele irá lutar contra o próprio peso para atingir a marca adequada de sua categoria, contra a imprensa que busca nele um personagem que não é, contra a ganância de empresários corruptos (o boxe é um esporte tradicionalmente sujo) e contra os próprios sentimentos ao se apaixonar por uma moça de sua cidade quando deveria estar concentrado exclusivamente na luta. Assim como a mosca presa no copo em certa sequência, não há saídas possíveis no ambiente em que Olli Mäki está inserido.

Raija, uma espevitada moça, educadora de jardim de infância, se torna a válvula de escape necessária para lidar com tudo que envolve a grande luta, pois ela é a única ligação real com a cidade de Kokkola, onde Mäki realmente fica à vontade. Aqui, há uma subversão dentro do gênero de boxe, pois onde o lutador se sente confortável não é no ringue (são pouquíssimas as cenas de luta), mas nos momentos em que pode se relacionar com a moça. Mesmo os treinos são diferentes quando ela está por perto — as corridas passam a ser divertidas, por exemplo. Cria-se um conflito entre a figura de Raija e a luta de boxe mais importante da Finlândia, conflito que Mäki tem de administrar. Quando ele a pede em casamento, ela retruca: “você vai ser campeão mundial?”; essa ironia mais parece uma piada do diretor Juho Kuosmanen com Rocky: um lutador (1976), de John G. Avildsen, sobre a paixão que acresce de forças o lutador no momento em que mais precisa. No filme finlandês, o espectador já sabe de antemão que Mäki não terá chances de vencer o cinturão e a relação com Raija é o que realmente move a trama.

Além da paixão que cresce em tela, há outra subversão do gênero dos filmes de boxe em O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Maki: a figura de Davey Moore, o lutador norte-americano, que surge como uma máquina pronta para lutar. Dispondo de cartel de vitórias invejável, Moore detém o cinturão e não parece aflito para defender seu título. Além disso, não há qualquer história pregressa daquele lutador. Em geral, nos trabalhos sobre boxe, há trajetórias de superação dos sujeitos que passam por várias porradas da vida até conquistar vitórias no ringue. Menina de Ouro (2004), do sempre clássico Clint Eastwood, apresenta alguns personagens com essa característica.

Como a maioria dos filmes são americanos, cria-se um imaginário desses personagens passando por obstáculos em seu país de origem até alcançarem o sucesso. Até mesmo na história do pugilismo americano, Muhammad Ali ou Mike Tyson, por exemplo, são lembrados pela infância dura antes de alcançarem sucesso. Neste caso, contudo, Olli Mäki não terá de enfrentar um lutador pobre que passou por situações dramáticas na vida, mas a figura que representa a maior potência econômica do mundo, o profissionalismo do esporte e, em contexto de guerra fria, a necessidade de autoafirmação perante outros países. A dificuldade ao se relacionar com a imprensa se materializa como a primeira derrota sofrida do finlandês, que expõe o esporte como algo muito além do ringue em si e com o qual Davey Moore já parece acostumado.

Em dada sequência, uma moça aparece sendo arremessada em um tanque de água para o deleite do público de um circo em Helsinque. Da primeira vez que Mäki a viu, se divertiu com todos os presentes ao ver a moça tomar um banho gelado. Da segunda vez, entretanto, o pugilista percebe a moça em seu camarim, cabisbaixa com a situação que passara. Essa cena chama a atenção por quebrar o ritmo do filme: a câmera fica imóvel e o plano ponto-de-vista expõe de forma gritante (que não combina com a obra, que sempre se coloca a uma certa distância das ações, para representar, inclusive, a timidez do protagonista) que Mäki não quer fazer parte do mesmo espetáculo. As figuras do pugilista e do homem de família são antíteses tanto quanto a moça em cima do tanque de água e sozinha em seu camarim.

O último round da narrativa acontece na data de 17 de agosto de 1962, dia que mudará a vida de Olli Mäki para sempre. E se a relação com Raija e a carreira se chocavam, fica claro a escolha do protagonista ao comprar um anel de noivado horas antes da luta. Não é por acaso que o filme se encerra com os dois jogando pedrinhas em um lago, símbolo da vida pacata que estão prestes a desfrutar. O dia mais feliz da vida de Olli Mäki não é o ápice de um homem extraordinário, mas de alguém que escolheu uma vida comum ao lado da esposa. O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki é sobre um boxeador de um país que não tem a menor tradição no esporte; no final das contas, é um filme de boxe que não versa sobre boxe.

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