O feminino e o feminista em 10 Coisas Que Eu Odeio Em Você

Eduarda Rodrigues
cinecríticauff
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6 min readNov 13, 2017
Kat (Julia Stiles)

A literatura shakespeareana ainda é tão influente na dramaturgia europeia/estadunidense que até hoje se fazem filmes inspirados nas obras do inglês dos mais diversos gêneros. 10 Coisas que Eu Odeio Em Você, filme de Gil Junger, lançado em 1999 é um grande exemplo disso. Baseado na peça A Megera Domada, essa comédia romântica para adolescentes segue vários clichês do gênero, mas mesmo assim tem uma abordagem bem diferente da maioria produzida, principalmente na época. O filme acompanha as irmãs Katharina (Julia Stiles), a protagonista que não é bem aceita na escola, caracterizada como “revoltada”, “estranha”, “megera”, e Bianca ( Larisa Oleynik) Stratford, caracterizada como a patricinha popular, bem feminina, amiga de todos, sonho dos garotos da escola, e apresenta outros personagens do núcleo principal que são dos mais diferentes estereótipos da escola, nerd, valentão, popular. Na trama, Bianca só pode sair de casa desde que sua irmã também saia, de acordo com uma regra imposta pelo pai das duas, então Cameron (Joseph Gordon-Levitt), o nerd novo, monta com seu melhor amigo um plano que inclui levar o garoto popular da escola a pagar o único que teria coragem de sair com Kat, o valentão Patrick (Heath Ledger) para que o faça, podendo assim chamar Bianca para sair, mas as coisas não saem como o esperado e Patrick acaba se interessando por Kat de verdade. Mesmo tão imerso nos clichês da comédia romântica, com todo o roteiro girando em torno das relações entre Kat, Patrick, Bianca e Cameron, o filme apresenta temas que já vinham sendo desconstruídos pelos filmes anteriores do gênero, como As Patricinhas de Baverly Hills, mas de maneira mais evidente, essa crítica vai se ater a representação do feminismo feita pela película.

O tema é introduzido na trama de diferentes maneiras ao decorrer do filme, logo no início é apresentado ao espectador como Kat é diferente de todas as outras meninas da escola e dos filmes para adolescentes, ela se veste de maneira confortável, com tons escuros, sem grandes vaidades, ao contrário de Bianca, que usa muitos vestidos, acessórios no cabelo, cores claras e flores, caracterizada de uma maneira levemente infantilizada, a caracterização dos espaços também é muito importante para a visualidade do recorte abordado, o que fica bem claro nos quartos das meninas, que refletem seus próprios estilos, mas principalmente na apresentação dos lugares frequentados pelas feministas nos anos 90, como o clube que Kat frequenta, onde tocam bandas do gênero riot grrl, característico da terceira onda do feminismo nos EUA, que estava em seu ápice na época. A abordagem também se dá através das referências citadas por Kat durante todo o filme, como as banda Bikini Kill e Raincoats, representantes do gênero citado e o livro Mística Feminina, ainda falando da representação de características da terceira onda do feminismo, quase toda a trilha sonora do filme é composta por tais bandas, e todas as músicas têm pelo menos vocais femininos. No tocante ao roteiro, existem inúmeras falas de Kat em que ela deixa claro seu posicionamento, levando ao público algumas ideias feministas que estavam começando a ser discutidas na mídia. Apesar do modo direto como a trama traz a discussão feminina para um público jovem, ela peca em vários momentos, seja pelas repetições impostas pelo gênero, ou por uma dificuldade em explicitar o que etá sendo reproduzido como padrão e o que está sendo problematizado, o mais importante então é ressaltar o que funcionou no papel esclarecedor e o que foi deixado de lado.

Uma das maiores vitórias do filme é a representação das mulheres como seres complexos, que têm gostos e desejos que não envolvem homens, que são capazes de discutir sobre vários assuntos, que desenvolvem atividades que não são consideradas femininas, como a diretora que escreve contos eróticos e Kat que joga futebol, de fato, o argumento do roteiro em relação a essa apresentação do feminismo para o público é exatamente essa caracterização das mulheres que lhes dão voz e uma vida aparte dos homens, ao mesmo tempo em que os homens são representados como as mulheres são na maioria dos filmes do gênero, toda a trama que os envolve gira em torno das protagonistas, o que inclui todas as conversas que os personagens masculinos têm entre si, são todas sobre mulheres, essa inversão de papéis acontece de maneira a deixar os personagens masculinos mais desinteressantes ao público, pois são mais rasos. Alguns comportamentos femininos de resistência também são representados, Kat constantemente ironiza o comportamento esperado das mulheres perto dos homens, principalmente em suas conversas com Patrick, além de fazer críticas à feminilidade e à sociedade patriarcal. O filme também representa muito bem como o machismo está entranhado em diferentes esferas da sociedade, sendo em casa, com as regras loucas do pai, que não as deixa sair de casa, por acreditar que elas não seriam capazes de cuidar de si; nas relações homem-mulher, exemplificado pela história que envolve Kat e o popular Joey (Andrew Keegan) ou nos espaços sociais frequentados, como o julgamento que Kat sofre depois de dançar na festa. Alguns outros pontos também podem ser pontuados como chaves para o sucesso da representação, como Kat dividir o lugar de “herói” com Patrick, não sendo a donzela em perigo, e a apresentação de um caso de abandono de lar feito por uma mulher que não tem sua moral julgada a partir disso em nenhum momento do filme.

Em contrapartida aos pontos fortes, o filme deixa a desejar na construção da diferenciação entre a protagonista e as demais, por ser feminista, Kat é excluída na escola, é considerada revoltada e radical, o que é obviamente um espelho de como a sociedade dos EUA nos anos 90 viam as mulheres com esse posicionamento, não há uma tentativa de desvencilhar essa imagem de “louca” da mulher que luta por seus direitos, os clichês do filmes mantêm os personagens dentro das características que deveriam ter de acordo com a sociedade, a mulher também é constantemente vista pelos homens em um lugar de docilidade e ingenuidade em suas ações e falas, que movimentam uma parcela grande demais da trama para um filme que é focado nas representações femininas. É ainda gritando o fato de que não a interseccionalidade na retratação do tema, Kat apesar de tudo é uma menina padrão, branca, magra e loira, o filme não deixa espaço para a discussão do feminismos para meninas negras, ou gordas, ou lésbicas, ou trans, mas tendo que se levar em conta que o filme foi feito e se passa nos anos 90, ele reflete o feminismo da terceira onda que era principalmente criticado por não ter um discurso que abrangesse a diferentes mulheres, fazendo sentido essa restrição.

“10 Coisas que Eu Odeio Em Você” grita anos 90, tanto em sua estética quanto no modo como são abordados os recortes sociais. Com a preocupação de retratar a mulher com complexidade, o filme trata de dar voz a milhares de adolescentes que só se viam representadas por histórias de amor com garotas que regiam suas vidas de acordo com homens, além de apresentar muito fielmente a época do feminismo na qual ele foi desenvolvido para as meninas. Mesmo caindo nas armadilhas de roteiro acima citadas e com uma real dificuldade em estabelecer o que está sendo questionado e o que só está sendo reproduzido, o filme deixa claro um posicionamento que mostra às meninas que há outras alternativas além do rosa e do machismo e que está bem ser diferente, mas infelizmente para que se consiga perceber todas as nuances em que o filme revoluciona na abordagem do empoderamento feminino, serão necessárias várias sessões de TV e um olhar que procure por tais sinais. Ah, Kat fica com Patrick no final como em qualquer boa comédia romântica, o final poderia ser mais trabalhado? Sim, mas se apaixonar não faz dela menos feminista.

Por Eduarda Rodrigues.

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