O protagonismo da Mãe em uma obra sobre a Criação

Gabriel Ferreira
cinecríticauff
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4 min readOct 5, 2017

Friedrich Schlegel, teórico do primeiro romantismo alemão (segundo a leitura de Walter Benjamin) acreditava que a crítica era uma forma artística, tanto quanto a própria arte a que ela deve fazer referência. Eu sentei para escrever assim que cheguei em casa da sala de cinema, pois senti que era o certo a se fazer. Escrita e dirigida por Darren Aronofsky, “mother!” é um filme sobre uma mulher (Jennifer Lawrence), que está reconstruindo a casa de seu marido (Javier Bardem), que por sua vez passa por um bloqueio criativo que o impede de escrever. A casa, isolada no meio do mato, no centro de um paredão

O filme é um exercício cíclico de uma natureza espantosa, com força e crueza ímpares. Também é um exercício de simbolismos que cria, ao mesmo tempo, pelo menos três linhas muito claras de analogias em torno do símbolo da Criação. Bardem enquanto Pai, Artista e Deus. Lawrence enquanto Mãe, Artista e Natureza. A casa enquanto Lar, Obra e a Terra. E o filho do casal enquanto Filho, Obra e Jesus. Em certo ponto do filme, no segundo ato, a lógica naturalista já não mais se aplica, mas nesse ponto, o filme já está muito além de um exercício naturalista. O filme nos deixa processar a teia de simbolismos que sustenta o enredo e, que conforme avança, se torna mais densa, mais vigorosa, e com mais vida própria. O enredo compreende isso, e ele progride de forma a acompanhar essa complexidade. As elipses temporais e os diferentes recursos hiperbólicos aglutinam-se de forma a manter o fluxo de consciência da obra, que passa a ser ditado pela condensação de metáforas e simbolismos.

Esse fluxo funciona em conjunto à crescente tensão que o filme produz. A câmera anda colada ao rosto de Lawrence, atenta às menores nuances que ela inflige à sua personagem, o que ressalta o incômodo que a personagem sente — e se o diretor nos posiciona tão próximos de sua protagonista durante todo o filme é para que partilhemos de seu zelo pelas suas duas obras. Na primeira metade, a tensão é construída de forma progressiva, a cada personagem que invade aquele espaço, até explodir em seu clímax, no qual a casa se esvazia. Na segunda, a obra volta a tensionar a vida dos protagonistas a partir de visitantes de fora, mas agora usando uma progressão rítmica da tensão ainda maior. Ao ter uma lógica estrutural parecida em suas duas metades, podemos supor que o filme quer nos ensinar como assistir à sua parte final, outra iteração de metáforas e acontecimentos.

A regência perfeita do diretor, que acumula cada elemento narrativo em prol do envolvimento fílmico, possibilita que o visual e que o sonoro te toque de uma forma íntima. Assim como eu acredito que a personagem de Lawrence nunca aceitaria reviver as situações pela qual ela passa durante o filme, eu acredito que eu também nunca mais aceitarei passar por elas. “mother!” é tão potente que desejo nunca mais reviver a angústia e a perturbação que ele exige do espectador.

“mother!” é um filme que respeita fortemente uma grande alegoria da Bíblia (um tipo de adaptação literária que sempre intensifica a obra), mas que não apenas sobrevive ao material literário, como consegue engrandecê-lo (!). Ao fazer da Mãe a protagonista, Aronofsky ancora sua releitura da Bíblia na perspectiva do planeta, sugerindo quais reações ele teria ao recorrente abandono de Deus, à incompreensão das massas e à perda de sua própria criação. Ao transformar, apesar do carinho demonstrado pelo personagem de Bardem, todas as pessoas (além dos dois protagonistas) em estranhos sem caráter, respeito e compaixão, sempre capazes de uma violência que permeia incontornavelmente o ambiente (simbolizada pela mancha de sangue que não some), a posicioná-los sempre como forasteiros e ameaças, reforça o quão tênue é a linha entre a adoração e a violação. E nada mais expressivo do que a expressão de culpa e decepção de Bardem, ao ver sua criação ser devorada em um ato tenebroso de ignorância antropofágica, que remete à culpa que Deus sentiria, fosse ele humano.

No final, o fruto da mãe, assim como o poema de seu marido, é consumido pelo público sem a devida consideração com seu autor. Porém, o homem ainda é celebrado como Criador, enquanto à ela — a inspiração artística, a gestação cheia de sacrifícios — resta apenas as entranhas de seu insucesso. Junto de sua cria, morrem ela e a casa, profanadas, em um ato de suicídio motivado pela devastação abrupta de suas obras máximas. Mas deve ser notado que uma mãe não deixa de ser mãe após a morte de seu filho, assim como um criador existe além da morte de sua obra. A partir dessas condições eternas de Criadora, Mãe e Artista, de suas entranhas renasce o diamante bruto, a esperança que reinicia todos os processos simbólicos do filme, em um novo processo de Criação.

Este final sugere que o processo artístico é um fenômeno cíclico, onde um final dá início a outro começo. Nos é óbvio que o filme não se inicia na primeira iteração dessa história, e também sabemos que não será a última. E essa crítica é mais uma vez em que a pedra de Sísifo alcança seu cume. E enquanto ela é lida, rola para baixo mais uma vez.

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