Onde nada acontece por acaso: a extravagância da ousada Atomic Blonde

Caio Amaral
cinecríticauff
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6 min readNov 13, 2017

Posicionada em meio a alguns dos principais acontecimentos da Guerra Fria, a trama de Atomic Blonde (Atômica) une extravagância, ação, espionagem e, é claro, uma protagonista feminina que surpreende ao redefinir o que pensamos conhecer como femme fatale. Interpretada com excelência por Charlize Theron (Snow White and the Huntsman, Mad Max: Fury Road, The Fate of the Furious), a impetuosa personagem Lorraine Broughton lembra ao público que não se precisa de um homem sob o título de 007 para que seja feito um espetacular filme de espionagem.

Sob a direção de David Leitch, escrito por Kurt Johnstad e baseado na graphic novel The Coldest City, o filme foi lançado em 2017 e reafirma, entre muitos altos e alguns baixos, como uma boa história ficcional de ação pode, sem perder espaço de roteiro, apresentar sequências de ação que tiram o fôlego até mesmo dos espectadores menos interessados pelo gênero.

Inseridos no ano de 1989, a maior parte do filme retrata de maneira não-linear Lorraine e os demais personagens — como James McAvoy, interpretando o perigoso David Percival, Sofia Boutella, dando vida a não-tão-inocente Delphine Lasalle, e Bill Skarsgård, com o curioso Merkel — , por meio de flashbacks violentos e ágeis, dias antes da queda do muro de Berlim. Enquanto isso, o restante da obra apresenta a protagonista, visivelmente ferida, em meio a um incessante interrogatório com demais figuras pouco marcantes para a narrativa.

Leitch parece trazer consigo tudo o que aprendeu com a outra obra que participou da direção, John Wick, e se esforça para passar dessa para Atomic Blonde todos os pontos que foram avaliados como positivos. A protagonista, presente no núcleo de uma narrativa que aborda perspectivas e consequências de um delicado jogo de espionagens duplas, funciona muito bem como uma figura que ora apresenta de maneira clara o que é certo ou errado, ora instiga que tudo é um pouco mais complicado do que essa visão dicotômica. Vale enfatizar — e a partir de agora, a fim de tratar com mais descrições alguns aspectos da trama, começarão os spoilers — , aliás, que ela se empenha para ser como tal ainda que, na verdade, não seja apenas uma agente dupla, e sim tripla. Esse ponto, em alguns instantes, pode ser visto como uma falha na narrativa.

Ainda assim, Lorraine é a típica personagem que, sempre que o espectador acha que já a conhece, demonstra ser ainda mais intensa e profunda. Voltando à característica de femme fatale supracitada, é necessário, uma vez que é um dos pontos altos do filme, ressaltar que Charlize Theron e toda a equipe por trás do filme, principalmente figurinistas, conferem a ela uma elegância e extravagância nem um pouco aleatórias. A aparência, a maquiagem e os trejeitos funcionam como a camada mais exterior da personalidade de Broughton, deixando claro, desde o primeiro momento, que ela é tudo o que você pode desejar em uma figura badass. Ainda assim, embora sexy e sem medo de seguir vários dos estereotipados elementos de uma beleza feminina hollywoodiana, em instante algum é permitido ao público esquecer que Lorraine é muito mais do que isso. Os figurinos, aliás, são responsáveis por tal feito também com os demais personagens principais, dando a cada um deles uma melodramaticidade singular e crível.

E o exagero não para aí. Seja na aparência, seja nas paletas de cores ou nas tomadas de ação, acrescenta à trama sentidos peculiares e intrínsecos à narrativa. A paleta predominantemente em tons frios, quase flertando com a estética noir, deixa tudo ainda mais verossímil com os delicados recortes socioculturais e temporais nos quais a história está inserida — além, é claro, de atribuir certa sensação de suspense, que acaba resultando em outro ponto positivo. Esses aspectos são tão bem trabalhados que, quando unidos às cenas de ação, violentas, minuciosamente planejadas e muito bem coreografadas, fazem com que os espectadores mais atentos, na maior parte dos cento e quinze minutos, ignorem com prazer elementos de cenário que, de acordo com o ano de 1989, não poderiam estar ali.

Falando em erros, são lembrados alguns momentos, principalmente diálogos pouco fluídos, que acabam ocorrendo, em sua maioria, entre algumas das melhores tomadas do filme. Por consequência, é comum, enquanto espectador, acabar sentindo parte da euforia de cenas excepcionais que acabavam de ocorrer sendo substituídas por conversas monótonas e nem sempre relevantes.

Voltando para os acertos da obra, é preciso falar com mais atenção sobre as paletas e as cenas de ação. Elas, unidas aos figurinos impactantes, às atuações ímpares, ao roteiro em que, como dito, nada é aleatório, e à excepcional trilha sonora com diversos clássicos dos anos 80 e 90, resultam em sequências memoráveis e prazerosas de serem vistas.

Lorraine, David Percival, Delphine Lasalle e Merkel, entre vários outros, assumem algumas das principais posturas necessárias para uma boa história, intercalando entre heróis, vilões, mocinhos, guardiões do limiar e muito mais. Essa, aliás, é uma das características que fez muitos caírem nas graças do filme: tudo e todos se esforçam para não serem estáticos, e sim, como seres humanos reais, peças em constante evolução para a trama.

As cenas de ação, é claro, como todo bom filme de espionagem, são muito importantes, seja para demonstrar as habilidades dos personagens, seja para desenrolar a ficção e gerar êxtase. Não existe, em Atômica, o medo de fazer os personagens sangrarem. E isso é excelente. Todos são capazes de atacar e machucar, mas, mais importante do que isso, todos são passíveis de agressões e ferimentos. Ninguém é invencível, e ninguém é fraco demais. De Lorraine até o mais distante dos figurantes, todos lutam, vencem e perdem. Os medos de rasgar figurinos, arruinar penteados ou quebrar cenários não existem. Essa distância do irreal e as coreografias de lutas, que parecem ter sido planejadas por anos, quando unidas aos vários planos-sequência, são de tirar o fôlego.

Voltando a um elemento anteriormente citado: a personagem de Charlize Theron é uma agente tripla. Em uma análise mais atenciosa, é possível perceber que esse fato, embora, para muitos, tenha sido colocado apenas como ato final de choque, a fim de encerrar o filme de maneira dramática e over the top, estava planejado desde o início. Como dito, em meio à paleta de cores quase sempre fria e acima dos outros tons utilizados, existem outras. E cada uma dessas outras é utilizada em momentos específicos: uma para quando Lorraine está agindo como agente de uma agência; outra para quando ela se comporta como de outra agência; e, por fim, uma última, para quando a personagem está em seus momentos mais íntimos e verdadeiros, fiel aos seus próprios ideais e à agência da qual realmente é. A inserção de Delphine acontece predominantemente nas cenas que contém esta última paleta de cores, expressando que os momentos e sentimentos ali presentes eram reais. Diante disso, pode-se concluir que não existiriam instantes melhores para apresentar ao público o quão humana e vulnerável a protagonista pode ser, apesar de uma agente secreta talentosa e experiente. Além disso, foram nessas cenas em que foi explorado o fato da espiã ser bissexual.

Em meio às cenas de ação realistas e brutais, aos figurinos e maquiagem cuidadosamente planejados, às atrizes e aos atores muito capazes, ao recorte sociocultural instigante, às paletas mais do que ímpares e, é claro, muitos e muitos trechos de Sweet Dreams (Are Made of This) e dramaticidade sem medo do exagero, o roteiro de Atomic Blonde prende e provoca do começo ao fim, provando que é uma obra onde nada acontece por acaso.

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Caio Amaral
cinecríticauff

Product Manager @ idwall / Mestre em Comunicação pela UFF