Os erros e acertos de Baby Driver

Gabriel Ferreira
cinecríticauff
Published in
5 min readNov 13, 2017

Da bela regência da primeira sequência à contradição no ato final, como o novo filme de Edgar Wright se sabota a ponto de comprometer o resultado final

Eu descobri “Baby Driver” junto a elogios: uma aprovação quase universal, elogios à montagem, arte e fotografia, ao personagem principal (interpretado por Ansel Elgort), e à narrativa fluida, leve e divertida. O catalisador de todos os elogios eram, sem dúvida, o jovem diretor Edgar Wright, pela regência de diversos elementos narrativos e pela experiência divertida da grande maioria do público. A ideia de envolver o subgênero do “heist movie” com o gênero do musical — uma ambição corajosa e promissora — me convenceu, junto dos elogios com os quais descobri o filme, de que esse poderia ser o filme que elevaria definitivamente minha opinião sobre Edgar Wright. Não foi. E o mais intragável é a demora para o filme revelar seus pecados, o que reforça a expectativa positiva e realça a decepção posterior.

Logo em sua primeira sequência, o diretor revela todos seus pontos fortes. Os gêneros de ação e de musical, para funcionarem, precisam devotar atenção para a execução do ritmo correto, sob o risco de perder a intensidade de ação e a sua musicalidade. Ao combinar dois gêneros tão aparentemente distintos com uma relação tão estrita com a montagem, era claro que precisaríamos ter um espetáculo técnico no quesito. A ação constante obedece à música, e a montagem faz a ponte entre os dois gêneros durante uma sequência arrebatadora do início ao fim. Cada cena pulsa de acordo com a música escolhida previamente, e é a incrível coordenação entre movimentos de atores ou quaisquer sons diegéticos e a batida da música.

O personagem principal é apresentado durante a tensão antes do primeiro assalto, com a cara fechada, junto dos assaltantes. Assim que eles deixam o carro, Baby se transforma: um motorista capaz de alternar entre frieza e espontaneidade, sempre concentrado em sua missão, mas remetendo sempre a um ícone musical que equilibra técnica e emoção em sua performance. Seus movimentos com as mãos e o lip-sync nos reforça a lógica musical do filme, a ação coreografada que já está clara desde a saída dos assaltantes batendo a porta em sincronismo com a batida da música. Quando os assaltantes retornam, temos já a indicação de como a ação se desenvolverá. O lado musical deixa de incorporar a música ao dia a dia para fazer o inverso, e buscar o ritmo musical presente nas ações normais. E sob essa lógica, deixamos a música e o carro vermelho nos carregarem pelas ruas de Atlanta.

Porém, o filme é tão rápido em exibir todo seu repertório que começa a ser desinteressante quando começa a repetir personagens e locações, dando a sensação de que já vimos tudo aquilo antes, só que melhor executado. O primeiro assalto com perseguição é o melhor assalto com perseguição, a melhor sequência de ação e a melhor sequência de todo o filme. A primeira cena de Baby no galpão de Doc (Kevin Spacey), é a melhor ambientada no galpão. A primeira cena na casa de Baby é a melhor cena na casa de Baby. O primeiro encontro com Debora (Lily James) quase é a melhor cena com os dois — e seria, não fosse a cena na lavanderia. Ou seja, o filme exaure seus melhores atributos ainda no primeiro ato.

A partir daí, o desenvolvimento de personagens (ou a ausência dele) se torna um problema. O caso de Baby é o mais emblemático, pois ele é o personagem central, logo o que deveria ser melhor aproveitado. Baby esqueceu de dar partida no carro ao ver que uma ação desastrada de seu grupo resultara no assassinato de um segurança, e depois vemos uma cena muito impactante, na qual ele se livra de um cadáver, com uma disciplina inexorável, mas uma clara ojeriza a envolver-se com esse tipo de ação. Essa camada adicional é muito interessante, pois constroi um anti-heroi Robin-Woodiano, com uma atuação profissional ilegal (sempre executada com frieza implacável) mas que nunca faria mal a nenhuma pessoa. O romance também traz à tona um lado mais doce ao anti-heroi. Ele também não se abala com o constante bullying de membros das equipes — notadamente Griff (Jon Bernthal) e Bats (Jamie Foxx). Porém, no último ato, toda essa construção é desperdiçada ao fazer com que Baby mate Bats. Todo o caráter que o filme deu ao protagonista, de repente, percebemos que era apenas um artifício para garantir seu carisma junto ao público. O último ato é uma ode ao Baby que nunca vimos no filme, um assassino que pensa apenas em si e nas pessoas que gosta (o lado mais doce do egoísmo). Depois disso, um regresso ao Baby doce e romântico, em uma cena que assusta pela breguice. Ou seja, o filme sequer tenta esconder que qualquer traço de moralidade do seu personagem principal está a serviço da conveniência — o Nice Baby no início e no final, para que o público simpatize e o Bad Baby quando isso é necessário para que ele se salve.

Doc e Debora também possuem mudanças de caráter bruscas para salvar Baby em momentos capitais, sugerindo que a sobrevivência do protagonista é mais importante do que integridade moral e lógica de desenvolvimento de caráter. Já Bats, Darling (Eiza Gonzales) e (Jon Hamm) não passam por nenhuma deturpação de caráter, porém são personagens tão uni ou bidimensionais que isso mal poderia ser considerado algo bom, senão em comparação com o desastre que ocorre com os outros.

E o que isso significa para o filme da primeira sequência? Que, nós, os expectadores, somos confrontados com uma decisão terrível: a de deixar-se deslumbrar pela execução quase perfeita de seu primeiro ato, pela estética agradável e pelo carisma de um jovem casal ou a de militar contra o descaso e o maniqueísmo do roteiro que presume que todo o público estará tão deslumbrado que escolherá a primeira opção. É impossível escolher apenas uma das duas, mas o veredito tem que levar em consideração o fato de que o filme apenas comete esses erros por acreditar que o deslumbramento visual e sonoro seria suficiente para nos fazer deixá-los passar. Que os filmes errem, mas errem com honestidade. Assim, eu não deixo passar.

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