“Straight Outta Compton” e o contexto do nascimento do gangsta rap.

“Cause the boyz in the hood are always hard,
You come talkin’ that trash, we’ll pull your card.
Knowin’ nothin’ in life but to be legit,
Don’t quote me boy, cause I ain’t sayin’ shit”

João Alves
cinecríticauff
6 min readDec 9, 2017

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Niggaz Wit Attitudes. Os pioneiros do gangsta rap.

O ritmo que invade meus ouvidos neste momento é o mesmo ritmo que sempre me fascinou, assim como toda uma geração. O rap. Fascínio gerado pela admiração pela capacidade com que os poetas (geralmente) marginalizados conseguem expressar suas intensas vivências através de rimas e ritmos, que embalam o ouvinte ao mesmo tempo em que lhe dão um choque de realidade. Admiro também a coragem do diretor F. Gary Gray por aceitar a árdua missão de retratar fidedignamente o nascimento de um dos grupos (assim como o de um gênero) musicais mais controversos da história da música. Apesar da penosa tarefa, o filme foi um sucesso de bilheteria justamente pelo aspecto controverso e pioneiro do grupo. Straight Outta Compton (2015) bateu a casa dos 200 milhões de dólares no mesmo ano de lançamento e se tornou o filme de maior bilheteria realizado por um diretor afro-americano na história. Talvez o fato de ter os ex-membros do grupo, Dr. Dre e Ice Cube, como produtores tenha algo a ver com isso.

Falando no grupo…

Na película, nos é mostrada a história e o nascimento do grupo de gansta rap N.W.A. (Niggaz Wit Attitudes) que teve sua criação em 1986 em Compton, Califórnia. Na película, o grupo formado por Eazy E, Dr. Dre, Ice Cube, DJ Yella, MC Ren e Arabian Prince (este membro foi deixado de fora do filme) é representado respectivamente por: Jason Mitchell, Corey Hawkins, O’Shea Jackson Jr. (atuando no papel de seu próprio pai), Neil Brown, Jr. e Aldis Hodge.

Imagem de divulgação do filme, simulando com os atores a famosa imagem do grupo.

No decorrer do longa-metragem além de vermos o surgimento do grupo, vemos também o contexto em que os membros do grupo estavam inseridos. Contexto que pode ser considerada a força motriz do grupo. Afirmo isso pois quando o N.W.A. foi formado, em meados da década de 80, seus membros viviam no gueto californiano e estavam inseridos num contexto de violência e pobreza. Assim sendo, suas letras explícitas, violentas e recheadas de referências ao mundo do crime e das gangues podem ser consideradas um “efeito colateral” do cotidiano dos membros pois, a arte é um reflexo da sociedade que a produz. Isso fica explícito quando o filme nos mostra como a primeira música do grupo foi financiada por dinheiro do tráfico de drogas realizado pelo membro Eazy-E. Este aspecto do filme merece uma atenção especial pois foi fiel à realidade cruel vivida pelos membros. Em diversas cenas no proceder do filme vemos as condições de pobreza e violência nas casas, nas periferias, e especialmente nas interações… Especialmente pois, em variadas partes do filme vemos como o racismo e a violência policial foram um fator crítico na vida dos membros, como cidadãos e como artistas pois, as diversas humilhações e agressões sofridas nas mãos da polícia de Los Angeles acabou por gerar uma reação do grupo.

Por se sentirem oprimidos e silenciados pelo sistema o grupo dá a luz a um de seus maiores hits e quiçá da história do Rap, o “Fuck the police”.

Cena da confusão com a polícia após o show em Detroit.

O hit pode ser considerado o mais polêmico do grupo e causou diversas reações negativas por parte da mídia e chegou até a represálias por parte da polícia. O que explica a confusão ocorrida no final do excerto acima, quando o grupo desafia a polícia ao cantar o hit controverso. É interessante reparar em como as tomadas e os ângulos escolhidos pelo diretor criam uma sensação de que o grupo estaria em sintonia com a plateia ao desafiar o departamento de polícia de Detroit cantando a canção. Seria como se o grupo fosse uma espécie de maestro e o público a orquestra. As tomadas flutuantes ampliam essa sensação quando vemos toda a extensão do público reverberando com os artistas. A astúcia do diretor com os ângulos se faz presente em diversos trechos do longa-metragem, especialmente quando ele tem a intenção de transmitir ao espectador a sensação que o personagem vivencia na cena.

A intenção do diretor fica evidente quando vemos o personagem Eazy-E recebendo seu diagnostico de HIV e quando ao final da cena a tomada se afasta e observamos o personagem pela janelinha da porta de seu quarto na enfermaria. A sensação que é passada é a de sufoco, impotência e até inferioridade diante de tal situação complexa.

Apesar do ótimo trabalho nas tomadas e ambientação do filme é válido ressaltar a ótima atuação dos atores, especialmente a dos 3 atores que incorporam os protagonistas Ice Cube, Dr. Dre e Eazy E. O fato de O’Shea Jackson Jr. ser filho do personagem que interpreta torna a atuação excepcional pois a semelhança tanto física quanto a do caráter foram fiéis ao protagonista. O’Shea revive os anos de juventude de seu pai ao se transformar no raivoso rapper Ice Cube. Creio que seja válido ressaltar a raiva do personagem pois o mesmo à usa como força motriz e motivadora para a composição de sua arte. De maneira contrastante, o DJ Dr. Dre (Corey Hawkins) é retratado como o membro puro, tranquilo e liderança criativa do grupo, através de seus ritmos e batidas instrumentais. Já Eazy-E (Jason Mitchell) nos é mostrado como o ex-traficante que visa abandonar a vida do crime pois sente que o destino que esta vida o levará se encontra à sete palmos abaixo da terra.

Aproveitando o ensejo, creio que seja necessário pontuar que a retratação dos membros não foi fiel à realidade em alguns aspectos pois os membros DJ Yella (Brown Jr.) e MC Ren (Hodge), que na realidade eram membros importantes do N.W.A. foram transformados em personagens secundários no filme. Outro ponto importante à ser ressaltado é a ausência do membro Arabian Prince no filme. Em entrevista ao canal “VladTV” ele afirma o seguinte:

“Muitas cenas na vida real, eu estava lá. Eu não estou lá no filme. Se você vai me tirar da historia do filme, crie outras cenas. Não escreva cenas onde eu estava lá“.

Outro aspecto fundamental do filme e que merece atenção é a trilha sonora. Straight Outta Compton não seria a mesma coisa sem a trilha composta por 46 canções de sucesso (maioria do grupo) e que não foram escolhidas à esmo. Este aspecto me remete à um trecho do texto de Suzana Reck Miranda “A música das telas e suas múltiplas funções”:

“No que tange à musica no cinema, há uma espécie de consenso de que uma de suas principais funções, desde o período silencioso, é evocar, sublinhar e suscitar emoções no espectador. Seja via música originalmente composta para um filme ou na utilização de um repertório preexistente, esteja ela na diegese (como execução musical filmada e/ou execução musical encenada), ou como música de fundo, sempre é possível, se for o objetivo, lidar com uma espécie de conteúdo emocional.”

Creio que seja curioso o papel da música neste caso específico de filme, onde nos é mostrada a história de um grupo que usa a musica como forma de se expressar. Na maioria das vezes a música reproduzida durante o filme deixa bem clara a intenção do diretor, que não é a de apenas contar uma historia mas também nos levar numa viagem no tempo visando nos inserir no contexto e no universo do grupo.

No geral pode se dizer que o filme não trata, apenas, de um grupo de rap oriundo do gueto americano, mas também do contexto de vida de toda uma juventude negra e marginalizada que precisa encontrar maneiras de superar os obstáculos e desafios apresentados pela vida.

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