The Handmaid’s Tale e sua narrativa através dos planos

Caio Amaral
cinecríticauff
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6 min readOct 2, 2017

Uma das séries mais renomadas de 2017, The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia) estreou neste mesmo ano apresentando ao público dez episódios agressivos, mas necessários. Com mensagens e críticas sociopolíticas impactantes, conta com elementos narrativos de ponta e transita suas abordagens acerca de liberdade sexual e feminina até as consequências de um opressor regime religioso; embasando-se em uma sociedade não-tão-distópica inflexível e ameaçadora para quaisquer cidadãos que não seguem suas reinterpretações de antigos dizeres bíblicos.

A série estadunidense, baseada no romance homônimo de 1985, de Margaret Atwood, foi criada por Bruce Miller — nome importante em séries como The 100 (2014-atualmente) e Eureka (2006–2012) — , e encomendada pelo Hulu, popular serviço de streaming. Abordaremos, aqui, o terceiro episódio de Handmaid’s, Late, como foco, responsável por um dos Emmy conquistados pelo programa, indo merecidamente para Alexis Bledel como destaque de atriz convidada em uma série de drama.

No futuro distorcido, Elisabeth Moss (Top Of the Lake, 2013–2017; Mad Men, 2007–2015), atriz principal, que dá vida à June ao lado de Alexis Bledel (Gilmore Girls, durante o período de exibição original e o revival da Netflix; Mad Men), interpretando Emily, e diversas outras, são “aias”. Por conta de desastres naturais e biológicos, quase toda a população feminina é estéril, sendo as aias as únicas exceções. Consequentemente, elas, que já não têm direitos básicos pelo fato de serem mulheres vivendo nesses tempos, são consideradas “propriedades” de homens da elite totalitária-cristã governante.

Um tanto quanto semelhante ao período feudal, os governantes possuem suas propriedades, famílias, contando com esposas estéreis e submissas, seus servos, distribuídos em cargos — sendo alguns deles motoristas, para homens, e os de empregadas e cozinheiras (chamadas “Marthas”) para mulheres — e, para cada família, uma aia. Uma vez por mês, nos períodos férteis de indivíduos como June e Emily, conhecidas, respectivamente, como Offred e Ofglen, pois as é tirado inclusive o direito de terem nomes, os homens governantes, com o auxílio de suas esposas, estupram as aias ao longo de uma cerimônia macabra e angustiante. E é principalmente ao redor dessas cerimônias que se desenvolvem as narrativas suplicantes das mulheres, ferramentas para manutenção do regime totalitário-cristão, e mais especificamente das aias, vistas como meros meios de perpetuação da espécie.

O terceiro episódio, dirigido por Reed Morano, começa lembrando ao espectador o desumano papel das aias: devem ser violadas e engravidadas. Depois que dão à luz a herdeiros, eles são retirados de seus braços e entregues às esposas estéreis dos homens da elite. Por fim, após o período de amamentação, são removidas daquela propriedade e entregues a um novo casal poderoso. Depois, é lembrado também que Emily, Ofglen, considerada uma “traidora do gênero” por ser homossexual e participante do grupo de Resistência Mayday, desaparece e é substituída por uma outra aia, que assume seu posto como “Ofglen” naturalmente, sem quaisquer importâncias para com a personalidade ou história da Ofglen antiga.

Emily/Ofglen, personagem de Alexis Bledel

O restante dos cerca de cinquenta minutos de episódio, embora também apresente desenvolvimentos ímpares de histórias como a de Moss, interpretando June/Offred, e de Yvonne Strahovski (Chuck, 2017–2012), tem foco em Alexis Bledel, que abandona quaisquer resquícios da inocente Rory Gilmore e exibe ao público, como supracitado, através de uma atuação destaque, os traumas e medos da injustiçada e aterrorizada Emily. Perdendo até mesmo o seu direito de falar, pois é amordaçada e encarcerada, precisa exibir o seu terror apenas com o olhar, vestindo roupas vermelhas em meio a um total de branco sem vida — como a narrativa sugere ser o futuro de qualquer um que se opor de alguma maneira ao regime totalitário.

Durante vários minutos, June conta que o ataque e tomada do Congresso por parte dos grupos extremistas cristão foi sorrateiro e, como a própria narrativa da série, minuciosamente planejado, com todos os detalhes e apontamentos necessários sendo feitos aos poucos, de forma natural e gradativa. Depois, é lembrado como fora outrora parte da vida de June e Moira (outra aia desaparecida, interpretada por Samira Wiley, de Orange is the New Black), pouco antes da tomada do governo.

As cenas seguintes continuam seguindo o renomado padrão da série: a fotografia é detalhista, apresentando personagens em cenários extremamente diagramados, a fim de atribuir aos momentos uma narrativa que mescla diálogos e acontecimento bem elaborados com um impacto visual benéfico para a trama. A trilha sonora também é um ponto essencial para o desenvolvimento das cenas, com seus diferentes sons melancólicos e, muitas vezes, agonizantes. Outro detalhe importante é tomado pelas cores: enquanto flashbacks mostram tons mais vívidos e uma paleta de cores diversificada, os dias atuais são quase sempre apresentados em tons de branco e cinza, tendo como cores diferentes apenas as aias, em seus trajes vermelhos, e a elite, em diferentes tons que transitam entre o preto, o azul e o verde. Por último, mas não menos valoroso, fica claro que todas as perspectivas dos personagens multifacetados e os planos abordados em cada uma das cenas fazem parte da construção do mundo de Handmaid’s, determinando como a narrativa irá se suceder.

Respectivamente, uma cena de flashback e uma dos dias atuais da série.

A diferença de poder entre os homens, mulheres da elite e demais mulheres, de acordo com seus cargos, continua sendo explorada, até que chegamos até a cena onde June é agredida pelo simples fato de ter encarado positivamente a orientação sexual de Emily/Ofglen e, portanto, não ter a denunciado para superiores. Ao dizer que não se importava com isso, ter se declarado amiga de Ofglen e por usar a palavra “gay”, é ainda mais agredida, sendo alertada que esse é um termo proibido e que os que se encaixam nele são “uma ofensa a Deus” e “animais repugnantes”. Emily volta à cena, ainda amordaçada de forma cruel e seguindo a diagramação de cores e melodia, para o seu julgamento. Em um ato desesperado, tenta seduzir um guarda, a fim de fugir, mas falha. Ao ser declarada uma abominação ao lado de sua amante, Emily é perdoada por ser fértil, mas a Martha pela qual era apaixonada não tem o mesmo destino. Enquanto são levadas até um cenário mortal, onde o destino da Martha chegará a um fim, dão as mãos em desespero, ambas ainda com as bocas tampadas e tendo que se comunicar apenas com os olhos angustiantes. Mais pontos positivos para as atuações e para a trilha sonora, que expressam todo o desespero das personagens e do momento. Por fim, a Martha é enforcada e Ofglen é obrigada a assistir a cena.

Depois de mais cenas onde June é agredida, voltamos para Alexis Bledel e seu último momento para exibir todo o seu poder de atuação.

Durante cerca de três minutos, agora com trajes brancos em meio a um cenário completamente branco e sem vida, a atriz finalmente está com todo o rosto visível. Em meio a choros e desespero ao sentir dores em sua virilha, levanta a roupa pós-operatória e percebe ao que foi submetida. Em choque, recebe a notícia de que ainda poderá ter filhos, mas todo o resto será mais difícil. “Não vai querer o que não pode ter”, é a frase que sugere ao espectador que a personagem teve sua genitália costurada de maneira que não conseguirá mais sentir prazeres sexuais.

Por fim, entra em cena uma batida alta, enquanto a câmera se aproxima dos olhos azuis de Alexis, a única cor viva em cena e que continuam sendo os pontos mais altos do episódio. Enfim capaz de expressar seu desespero por completo, Ofglen grita e chora enquanto seus olhos tremem, certa de que aquele não será o seu último momento sob os cuidados de extremistas sem quaisquer noções de humanidade.



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Caio Amaral
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Product Manager @ idwall / Mestre em Comunicação pela UFF