A poesia — estética e crítica- de Glauber Rocha

“Não conseguiu firmar o nobre pacto entre o cosmo sangrento e a alma pura”*

Giovanna Perroni
Cinema e Cerveja
3 min readApr 21, 2020

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Com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, a poesia dança nas produções de incomparável valor estilístico do baiano Glauber Rocha. O primeiro filme que assisti do diretor foi Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Posso dizer sem medo que foi diferente de tudo que já tinha visto e, confesso, não foi fácil interpretar o que via. Dai em frente, então, assisti a vários outros filmes do Cinema Novo, chegando até a escrever sobre o assunto na academia. As obras de Glauber Rocha são uma efusão de tudo o que é possível sentir e pensar, transe sensorial e, ao mesmo tempo, intensa reflexão política. Nem se ele fosse cientista político teria uma análise tão profunda e pontual. Assim como seu modo de viver era seu modo de produzir, como dito por Hugo Carvana “Ele queria o máximo total do delírio”.**

Expoente do movimento Cinema Novo, que segue o caminho das vanguardas européias, Glauber, assim como outros diretores do momento, criava, pela primeira vez, um cinema base de uma cultura propriamente nacional. A qualidade e sensibilidade de suas obras (como a de vários outros nomes brilhantes como Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues) trazem ao Brasil premiações e reconhecimento internacional sobre nossa produção artística. Terra em Transe, por exemplo, foi produzindo pouco depois do golpe militar, o que acrescenta valor histórico ao longa.

A linguagem poética está presente em suas obras, mas é em Terra em Transe(1964) que ela mais me tocou e me levou a escrever sobre o assunto. Porque informa não apenas sua razão, mas leva a crítica e a visão destrinchada do cenário político brasileiro (latino, mais amplamente) e seus pormenores até o coração do expectador. E, no meio do caminho, reflexões existenciais de resultarem em horas de pensamentos contemplativos.

Não anuncio cantos de paz
Nem me interessam as flores do estilo
Como por dia mil notícias amargas
Que definem o mundo em que vivo.

*

Não me causam os crepúsculos
A mesma dor da adolescência
Devolvo tranquila à paisagem
Os vômitos da experiência…

Glauber parece expressar seu próprio sentimento quando coloca à uma fala que “a política e a poesia são demais para um homem só”, descrevendo seu personagem principal, um poeta ligado à política, qual usa para extrapolar seus ideais e ideologias, lutando e militando, além de viver a frustração da luta por igualdade. O personagem foi inspirado no poeta Maurio Faustino, poeta, ensaísta, tradutor e jornalista. Glauber disse “Mário Faustino foi o maior poeta brasileiro de minha geração. […] coloquei (o poema) em meu filme, como homenagem; ele era um pouco como Paulo Martins”.***

Com a emoção que escrevo sobre a poesia de Glauber, ao ser tocada por Terra em transe, acrescento que a reflexão socio-cultural igualmente marcou e espalhou suas raízes. Mas a graça é inevitável diante da arte. Como o próprio dizia, “cinema é pintura em movimento com som”.****

*Poema “Balada” do poeta brasileiro Mário Faustino, publicado em 1955.

**Entrevista publicada na revista Manchete em 1980.

***Entrevista à revista Positif.

****Depoimento presente em Depois do Transe, documentário de Paloma Rocha e Joel Pizzini, de 1967.

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