Cinema Novo: revolução política e conceitual

Deus e o Diabo na Terra do Sol, do Glauber Rocha, foi o filme que jamais saiu de minha cabeça”

Giovanna Perroni
Cinema e Cerveja
9 min readJun 20, 2020

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Poster do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha, com a foto do diretor.

“Deus e o Diabo na Terra do Sol, do Glauber Rocha, foi o filme que jamais saiu de minha cabeça” Bong Joon Ho, diretor de “Parasita” (2019)

Essa frase vinda do diretor do primeiro filme estrangeiro a ganhar um Oscar de melhor filme (na história) impressiona, não é? Bem, esse filme que Bong cita é produto de um dos nossos mais importantes momentos culturais.

O Cinema Novo, movimento cinematográfico surgido em meados da década de 60 a partir de uma nova concepção de cineastas de esquerda da época que, com influências de vanguardas europeias como o Neorrealismo Italiano e a Nouvelle Vague, criou um movimento novo e politicamente engajado no cenário nacional. O Cinema Novo foi um movimento cinematográfico de dimensões internacionais, trazendo inovações temáticas e estéticas, porém com forte influência de movimentos europeus de vanguarda como o Neorrealismo italiano, Nouvelle Vague Francesa e o Experimentalismo soviético, utilizando-se de influências como Rossellini, De Sicca, Truffaut e Godard. Muitos utilizaram o que foi absorvido depois de viagens à Europa e contatos com o que se produzia. Fazendo parte do contexto ideológico do pós-guerra e dessas já citadas vanguardas europeias.

Influências da Vanguarda

É importante destacar duas grandes influências que o Cinema Novo sofreu do experimentalismo soviético, influências essas que marcam parte das principais características do movimento. Uma delas diz respeito à utilização do personagem coletivo representando uma multidão de pessoas, que toma o espaço de protagonismo, da classe e do povo representado. A outra influência se evidencia na complexidade de construção de planos em contraste e ressignificações espaço-temporais, quebrando com a tradição estrutural dos filmes clássicos e atribuindo ao corpo do filme complexidade e terra fértil para a reflexão e desconstrução conceitual, questões marcantes no movimento do Cinema Novo.

“Ladróes de Bicicleta” (1948) Vittorio de Sica (Neorrealismo italiano)

Com o neo-realismo italiano, a intenção de ambos em retratar as mazelas sociais e à retomada ao naturalismo, trazendo à tela rostos comuns, ampliando representação e aproximando a sétima arte das classes baixas.A crítica se dá principalmente às características provenientes da Nouvelle Vague francesa, como estilo e linguagem influenciados por este movimento, com uma subjetividade muito grande e movimentos de câmeras considerados muitas vezes desnecessariamente fluidos, vertiginantes, narrativa desnecessariamente desmembrada, formas complexas que, segundo os críticos desagradados por essas obras, eram desnecessárias.

Fases do movimento

O movimento passou por diferentes momentos em seu desenvolvimento em relação à desdobramentos da política brasileira, tendo surgido pouco antes do golpe militar de 1964.

A primeira fase do movmento cnemanovista trouxe, muito forte, o tema da escravidão, a posterior condição dos negros, consequência de todo o processo de escravidão e desprezo social — o que culmina na precarização dessas pessoas retratada na realidade das favelas — primorosamente retratada naquele que é considerado o primeiro filme do Cinema Novo: Rio 40 Graus (1955) de Nelson Pereira dos Santos.

“Rio 40 Graus” (1955) Nelson Pereira dos Santos

Não poderia faltar, ao se falar sobre Cinema Novo, o conceito glauberiano da estética da fome, a qual tenta entender e explicar como o uso dessas temáticas, fome e pobreza, presentes em países de terceiro mundo, como o caso da América Latina, são utilizadas e recebidas nas artes cinematográficas. Os europeus consumiriam, então, este tipo de arte porque o elemento que os atrai é aquele que capaz de retornar ao primitivismo, já que a fome é, para eles, um tipo de exotismo latino americano.

A obra Estética da Fome tenta entender como essa temática foi e é utilizada como forma de superar e se utilizar para superação da própria condição, não como uma romanização da pobreza, mas a resposta parece ser a transformação da tragédia em ferramenta, como Glauber Rocha elucida de forma bem clara “Enquanto não ergue as armas o colonizado é um escravo, portanto ele expõe que o movimento do Cinema Novo fez o que as instituições políticas e a sociedade não fez.

Na sequência, temos a Guerra Fria e, nesse contexto, percebemos o caráter elitista e autoritário da nova configuração política que estava por vir. Esse novo momento político estabelece a segunda fase do Cinema Novo, a qual vai de 1964 até 1968. Nesse momento, existia uma grande decepção por parte de artistas e militantes, cujos anseios de liberdade e democracia foram negados. Foi estabelecida a censura à imprensa e obras de arte pautada por questões morais e cristãs, típicas das classes médias que apoiavam o golpe.

“Terra em Transe” (1967) Glauber Rocha

Percebemos nos filmes dessa fase uma incontestável insatisfação com a realidade política e um sentimento de impotência, assim como roteiros pessimistas com personagens que se desiludem com política. Um exemplo claro desse momento cinematográfico é o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, produzido em 1967.

A terceira fase se deu sob o Ato Institucional nº5, editado em 1968, aumentando a censura e a repressão do regime militar. Mas foi também nessa terceira fase, em 1969, que foi criada a Embrafilme*.

Essa terceira fase foi marcada pelo uso de metáforas, de alegorias, de mensagens implícitas, em alguns casos permanecendo a temática, apenas com uma estética e linguagem diferentes, resultado de uma opressão violenta a quem parecesse criticar o regime. Em outros casos, se mudava a própria temática, ainda que não fosse a intenção pessoal dos cineastas (PINTO, Leonor E. Souza. Cinema brasileiro e censura durante a ditadura militar. Vemos, dessa forma, o uso de elementos como a natureza, o tropicalismo, metáforas e misticismos do país como um paraíso tropical, do brasileiro preguiçoso e esperto. E, principalmente, o “jeitinho brasileiro” do anti-herói.

“Macunaíma” (1969) Joaquim Pedro de Andade

Toda essa temática do exotismo brasileiro fica evidente no filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade (1969), baseado no livro homônimo de Mário de Andrade (1928). O filme mostra a vida de Macunaíma, “herói do povo brasileiro”, que desde jovem possui sexualidade aflorada, problemas de caráter e odeia trabalhar.

Revolução Conceitual

É muito importante perceber como esse período construiu as bases da nossa produção cinematográfica, tal qual a vemos hoje.

Até as décadas de 50 e 60 a produção cinematográfica brasileira eram, essencialmente, tentativas de imitar e parodiar filmes e estéticas estrangeiras de maior sucesso — era o momento das chanchadas (e pornochanchadas) — um gênero muito popular e muito produzido, de caráter burlesco com roteiros simples e modestos, mas que atingiam o grande público. A companhia Atlântida, fundada na década de 40 foi a precursora desse gênero, que marcou o cinema brasileiro até meados da década de 60. O protagonista desse momento era o competentíssimo Grande Otelo.

Com a intensa industrialização do governo JK, os segmentos culturais adquiriram uma maior importância e passaram a influenciar a opinião pública, o que convergia com o momento de forte nacionalismo desenvolvimentista. Foi neste contexto de muita industrialização em uma sociedade que a pouco tempo era agrária, intelectualizarão por parte dos artistas e um ativismo social e político fortes é que nasceu o movimento Cinema Novo. A euforia dos planos políticos se mostrou presente também nas artes, dialogando com a aspiração de criar algo genuinamente brasileiro. A intenção era criar algo novo, não importado, oriundo de manifestações culturais como a Bossa Nova e o Cinema Novo

Existia, no projeto cinemanovista uma intenção de levar o cinema brasileiro para fora do país e criar espaço para o cinema nacional. É importante deixar claro que esse espaço não existia até esse momento. O começo do cinema novo foi também um cinema baiano, retratando problemáticas da região nordeste do país, com personagens essencialmente nordestinas e laçando cineastas baianos nos grandes festivais internacionais de cinema.

O peso da história brasileira era muito grande nas produções e a finalidade parecia ser denunciar e criticar mas, principalmente, conscientizar e informar, uma vez que o público consumidor era constantemente bombardeado por histórias irrealistas e superficiais, provenientes de temáticas que em nada se aproximava da realidade e do cotidiano daquelas pessoas. Por isso, a questão histórica parece ser um ponto de partida essencial quando falamos sobre arevolução trazida pela primeira fase do Cinema Novo.

A parcela mais significativa da esquerda acreditava que a supremacia cultural dos países imperialistas não apenas eram superficiais, irrealistas e inaplicáveis no cotidiano brasileiro, como também considerava ser essa interferência a grande inimiga do desenvolvimento do país em geral, principalmente no que diz respeito à sua concepção de cultura e percepção de povo.

A perspectiva dos cineastas cinemanovistas a respeito da industrialização interna como solução à fuga ao capital externo pode ser uma colocação coerente no sentido de gerar autonomia diante de nossa própria produção cultural e nossa própria essência artística. Porém, isso não garante que as ideologias de próprio governo que “banca” a produção, esteja em convergência com os ideais do movimento, ou da relevância cultural de seu conteúdo. A Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme)* foi um exemplo claro disso, sendo ferramenta amplamente utilizada pelos militares como falsa propaganda democrática.

Contudo, a Embrafilme, apesar de criada por um governo autoritário de viés ideológico oposto àquele dos cineastas do Cinema Novo, foi imprescindível para a consolidação da indústria cinematográfica brasileira, inclusive para o movimento do Cinema Novo, obtendo espaço de articulação para suas produções, ainda que dentro da terceira fase desse movimento, onde a repressão era intensa e a linguagem utilizada precisava contar com metáforas e menor liberdade criativa.

O Grande Presente

O Cinema Novo trouxe, antes de qualquer coisa, questionamentos acerca da realidade brasileira, das condições socioeconômicas de seu povo e da precariedade no seu sistema político. Sendo um movimento essencialmente voltado à esquerda, abriu caminhos para pontuações significativas a respeito de problemáticas sociais. É clara a importância desse movimento para com a indústria cinematográfica nacional, bem como sua produção artística como um todo. Mas os reflexos oriundos se expandem significativamente á esfera política, uma vez que seu conteúdo se dá em reflexões de toda uma estrutura sistêmica disfuncional.

Você gosta de filmes como Tropa de Elite e Cidade de Deus? Bem, eles são a herança bendita do movimento. Esses filmes de excelência que temos hoje só existem por causa do “barulho” e da “bagunça” feita pelo Cinema Novo.

“Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” Glauber Rocha

*Criada em 1969, pouco tempo depois do AI5, foi uma empresa mista com a maior parte de suas ações pertencentes à União e estabelecendo um substrato mais consolidado para a produção cinematográfica nacional até então. A criação da Embrafilme sofreu críticas no sentido de focar os esforços na distribuição e expansão voltados ao mercado externo, ao passo que, segundo essas críticas da esquerda, o maior problema residia em uma falta de campo para o cinema nacional dentro do próprio mercado nacional.

Referências

AMANCIO, Tunico. “Pacto cinema-Estado: os anos Embrafilme”. ALCEU — v.8 — n.15 — p. 173 a 184 — jul./dez. 2007.

BENTES, Ivana. “Terra de Fome e Sonho: o paraíso material de Glauber Rocha” em “Ressonâncias do Brasil”. Fundación Santillana. Pgs. 90–109. Santillana del Mar. Espanha. 2002

CARVALHO, Maria do Socorro. “Cinema Novo Brasileiro” em História do cinema mundial/Fernando Mascarello (org.). — Campinas, SP: Papirus, 2006. P 289–309.

COELHO, Priscilla Passos. “O Papel da Embrafilme no desenvolvimento do cinema brasileiro.” Rio de Janeiro, 2009.

GOMES, Regina. “A recepção histórica: textos sobre o Cinema Novo brasileiro em Portugal”. Revista MATRIZES V. 8 — Nº 1. São Paulo, jan./jun. 2014.

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