Enxergar com o coração — “A vida invisível”, de Karim Aïnouz

Filme lança olhar atento sobre dissabores da condição feminina nos trópicos, em todas as idades — e a importância da sororidade para enfrentá-los

Carolina Assunção e Alves
Cinema e Cerveja
5 min readOct 31, 2019

--

Como seria sua vida? Em muitas ocasiões perguntei-me o que teria sido das mulheres das gerações de minhas avós, tias-avós, minha mãe e algumas tias e primas nascidas em décadas passadas. E se tivessem sentido a liberdade de escolher e reagir sem se submeter aos papéis sociais femininos impostos na época?

Que sonhos pessoais deixaram de satisfazer por pensarem que não lhes cabia esse direito, por terem sido educadas preferencialmente para o matrimônio e a maternidade? Aquelas que recusaram essa trajetória e optaram por caminhos diferentes tiveram a mesma lição de Guida, uma das protagonistas do filme A vida invisível, de Karim Aïnouz, revelada em carta à irmã Eurídice: "Descobri o que é ser uma mulher sozinha neste mundo".

A triste história das duas filhas cariocas de um português autoritário e conservador foi adaptada para o cinema a partir do romance A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha.

O cineasta cearense dá a ver as mulheres como reféns de diferentes tipos de invisibilidade:

  1. A identidade, os anseios e desejos são soterrados pelas funções sociais que elas "devem" desempenhar. A romântica Guida arrisca acreditar no amor como escolha íntima, mas arca com o estigma de mãe solteira, um preço alto a se pagar nos anos 1950 e até hoje. Eurídice sonha em ser pianista, mas esse projeto é frustrado pelo casamento. A mãe das duas não reage nunca aos desmandos do marido, mesmo quando isso a afasta definitivamente de uma das filhas.
Acesso ao infográfico completo

2. A responsabilidade pela construção de uma família e pela satisfação sexual do homem omite a brutalidade presente na intimidade entre Eurídice e o marido Antenor. Esse aspecto da vida conjugal tem servido, ao longo dos anos, como camuflagem para casos de estupro domiciliar e outros atos de violência doméstica naturalizada na nossa sociedade. Segundo levantamento do Datafolha encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 76,4% dos agressores de mulheres em 2018 eram conhecidos das vítimas. 89% dos feminicídios foram cometidos por companheiros ou ex-companheiros.

3. Uma espécie de cumplicidade entre homens é representada na relação entre o pai das protagonistas e o genro Antenor, interpretado por Gregório Duvivier. Isso aumenta a vulnerabilidade feminina a esquemas sociais viciados e vantajosos somente para a ala masculina. Ignorada, a mulher é transformada num instrumento de afirmação da virilidade, como se não tivesse o mesmo direito à existência e ao erotismo baseados nas próprias necessidades. Está ali para servir ao homem: dar-lhe prazer e/ou filhos. A relação sexual, nesse sentido, reverbera a dominação entre gêneros e o comportamento masculino desesperado para continuar no poder.

4. O apego ao conceito tradicional de família minimiza a possibilidade de construção de laços afetivos igualmente ou até mais sadios, a depender da situação e das pessoas envolvidas. Quando uma noção distorcida de família se sobrepõe à de humanidade, estragos acontecem… Guida é deserdada pelo pai, e o abandono a leva a reconhecer outras manifestações de amor familiar longe dos vínculos sanguíneos.

Eurídice, por sua vez, vive gestações indesejadas e sofrimento mental afastada da irmã, quem ela mais amava. O nome da personagem significa “largamente justa”, segundo o Dicionário Etimológico de Mitologia Grega. Remete à trágica história da ninfa dríade esposa do trovador Orfeu, morta por picada de serpente enquanto fugia de um assediador. Foi condenada a viver no inferno, para sempre longe do amado. Aí há muitas relações simbólicas com a vida de Eurídice Gusmão, não é mesmo?

Sororidade e linguagem cinematográfica

No filme, a solução para lidar com todos esses elementos de invisibilidade está em substantivos femininos: empatia, união e sororidade, ou seja, solidariedade entre mulheres. Assim como a saudade entre as irmãs separadas e a esperança do reencontro as motivam, a amizade entre Guida e Filomena as fortalece na dura rotina que encaram.

O roteiro transforma a versão literária do enredo em um melodrama marcado pela exuberância da Mata Atlântica, também feminina, e pela predominância do vermelho ao longo das cenas. A trilha sonora traz melodias que ressonam como a voz da introvertida Eurídice: o piano chora, se lamenta, grita de revolta. Quando executa as peças, a protagonista sente que desaparece. É diante do espelho que ela tenta se encontrar e se reconhecer, em muitos momentos. Passados muitos anos no enredo, a atuação de Fernanda Montenegro como Eurídice é um presente digno de agradecimento.

Na pré-estreia de A vida invisível em Brasília, Karim Aïnouz explicou a ligação entre os protagonistas de filmes que já realizou, como Madame Satã (2002) e O céu de Sueli (2006): "são vidas não contadas, pessoas que tentam colocar a cabeça fora d'água, mas alguém vai lá e afunda novamente". O reconhecimento da qualidade do filme se manifesta nas diversas premiações internacionais já conseguidas, como no Festival Um Certo Olhar, em Cannes. Há também a possibilidade de indicação para representar o Brasil como concorrente na categoria do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Porém, o mais importante é que A vida invisível sensibiliza porque nos faz pensar no sofrimento silencioso de tantas brasileiras que deram origem às nossas famílias. Gerações de mulheres que passaram por coisas inimagináveis, relegadas a um mecanismo de crueldade estrutural. Pessoas fortes, resilientes, resignadas, porque talvez ninguém tenha dito a elas que poderiam ser rebeldes ou donas das próprias rédeas. Mais de cinco décadas depois da época representada no filme e com muito medo da violência, continuamos a lutar por esse direito.

--

--

Carolina Assunção e Alves
Cinema e Cerveja

Jornalista, pesquisadora, Profa. Dra. em Linguística do texto e do discurso (UFMG), pós-doutorado em narrativas audiovisuais (CNRS-França).