Ghost World
Ghost World é um filme de 2001, dirigido por Terry Zwigoff e escrito por Daniel Clowes, criador da graphic novel que deu origem ao longa, que acompanha a vida de duas adolescentes, Enid (Thora Birch)e Rebecca (Scarlett Johansson), após terminarem a escola.
* Aviso: spoilers
O que parecia relativamente simples na vida de ambas, arranjar empregos e dividir um apartamento, resulta em algo completamente diferente devido ao afastamento das duas, que ocorre de forma tão sutil e gradual que é percebido através de alguns detalhes como os olhares de Enid.
É nesse ponto que, para mim, reside a beleza do filme. Sim, é uma história sobre esse período de transição para a “vida adulta” e sobre pessoas que se sentem deslocadas na sociedade, mas são tantas as nuances e acontecimentos que vão além da superfície aparente do filme que transformam sua essência em uma experiência rica para quem assiste (ou, como eu, assiste várias vezes).
Inicialmente, Becky e, especialmente, Enid aparentam ser duas adolescentes irritantes que gostam de coisas e pessoas diferentes e fazem questão de caçoar dos estereótipos apresentados de forma extremamente sarcástica e, por vezes, aborrecida, como um meio de reafirmar para o mundo sua originalidade e desprezo para com as convenções estabelecidas.
Praticamente todos os ambientes e cenários do filme possuem uma essência da graphic novel, como é perceptível pelo uso das cores fortes e pelos enquadramentos utilizados. A caracterização das personagens através dos ricos figurinos, além da maquiagem, reafirma a necessidade de afirmação de originalidade, principalmente de Enid, o que também ocorre na direção de arte, a exemplo de cada detalhe presente no quarto dela:
A partir de então, as coisas mudam e a distância emocional cresce entre Enid e Rebecca, ainda que elas se vejam com frequência. Isso ocorre a partir do momento em que Becky almeja o que elas planejavam há anos: um emprego comum e um apartamento cuja tábua de passar roupa que é oculta na parede se torna algo incrível para a personagem de Johansson, enquanto crescem em Enid as incertezas do futuro e tudo começa a “desmoronar” a sua volta, quando ela descobre que precisa refazer uma matéria para se formar, seu pai vai casar com uma mulher que ela detesta, dentre outros fatos.
Considero particularmente bonitos e dolorosos os momentos em que presenciamos Enid descobrir tudo isso: no início, quando ela fala que nunca mais vão ver o “Dennis” e considera isso algo realmente deprimente; ou no momento em que Enid percebe algo a mais em Seymour, pois ele é “o oposto de tudo que ela detesta” e Becky diz que não entende bem o que ela quer dizer; e no momento em que as duas se despedem e temos a sensação de que é para sempre.
As coisas realmente começam a mudar quando elas resolvem responder a um anúncio de jornal do que parece ser o cara mais carente e solitário de todos, Seymour, vivido brilhantemente por Steve Buscemi, e que é, definitivamente, meu personagem preferido no filme. Ele é um sujeito excêntrico, que coleciona muitas coisas, divide o apartamento com outro sujeito semelhante a ele, amante de jazz, blues e ragtime, e que, em certo momento do filme, afirma que não consegue se relacionar com 99% da humanidade.
A princípio, Enid e Becky querem apenas fazer o que costumam, que é se divertir, mas posteriormente Enid muda sua visão a respeito de Seymour e, ao longo do filme, ele se torna uma espécie de herói para ela, dividindo a essência de não se enquadrar em nenhum grupo social e não querer se resignar ao que todos esperam, intensificando o afastamento entre as duas meninas, já que Becky enxerga Seymou apenas como um cara patético e solitário, e assim passa a ver todos os que antes seriam “um dos nossos”, como afirma Enid.
O universo de Seymour é igualmente bem construído, incluindo os momentos sofríveis de vergonha alheia que fazem o espectador, assim como Enid, perceber as delicadezas do personagem, como nos momentos em que ele coloca o disco em uma sacola, vai até a lanchonete e pede um milk shake de baunilha esperando pela mulher do anúncio, tenta convencer um senhor a comprar um disco e quando vai a um bar, forçado por Enid, e uma mulher afirma que ele vai adorar a próxima banda, que toca “Blues de verdade”.
O apartamento e as roupas de Seymour são também um destaque e imprimem com talento o que ele realmente é (vale ressaltar que o personagem existe na graphic novel, mas é apenas secundário, enquanto no filme ele ganha destaque e é muito semelhante ao próprio diretor do filme). Curioso notar que, após o personagem arranjar uma namorada, ela o presenteia com uma calça jeans, de certa forma “modernizando” e adequando-o um pouco mais aos padrões, e ao mesmo tempo a calça que estava jogada na rua desaparece.
Mesmo que o próprio Seymour reconheça que detesta sua personalidade e acha que não é saudável ser um colecionador solitário, Enid se encanta pelo seu universo e o transforma em seu “projeto pessoal”, que aparentemente não termina bem para nenhum dos dois, mas é indiscutivelmente importante para o crescimento pessoal de ambos. Destaque para o momento em que ela ouve Devil Got My Woman do disco que comprou do Seymour e há, inclusive, um movimento de câmera que não é comum nesse filme, demonstrando o efeito que isso provocou em Enid:
Outro elemento presente no filme é a ironia, principalmente em relação à arte, ou “arte”, a exemplo da banda de blues no vídeo acima, da locadora de vídeo em que o atendente pensa de o filme 8½ é Nine 1/2 Weeks, e da aula que Enid precisa fazer, onde demonstrações vazias de objetos se tornam artes para a professora pois são explicadas em contextos sociais e falsamente pessoais, tendo como exemplo maior o vídeo realizado pela professora que “expressa” tudo o que ela é como pessoa, enquanto os desenhos que Enid faz e realmente representam o que acontece com ela, são ignorados:
À medida em que o final se aproxima, tudo parece dar errado, entre Enid e Rebecca, com a possibilidade de uma bolsa de estudos para uma faculdade de artes, um lugar para Enid se estabelecer e sua relação com Seymour, que termina o seu relacionamento com Danna e perde o emprego. Enid se sente culpada e vê o pouco que conquistou se perder em meio a mais incertezas. Nesses momentos cruciais em que as coisas começam a piorar, nota-se o uso da cor vermelha, representando algo de errado, um perigo ou apenas momentos críticos para a personagem:
Tudo isso é, para Enid, sinal de que deve fazer a última coisa que tem em mente: ir embora para um lugar qualquer sem falar nada para ninguém.
Muito já foi especulado sobre o final, como sendo uma metáfora para a morte de Enid, já que Norman esperava o ônibus que aparentemente nunca mais passaria ali, sendo a última pessoa com quem ela poderia conversar, e ao final conseguiu, enfim, chegar ao seu destino. É uma hipótese possível, mas penso que tudo foi uma espécie de “progresso pelo caos”, o qual foi necessário para que Enid seguisse em frente e buscasse novos rumos.