Pleasantville (1998)

A Vida em Preto e Branco

Yasmin Kahwage
9 min readFeb 5, 2014

Pleasantville é um filme de 1998, escrito, produzido e dirigido por Gary Ross (Seabiscuit, Jogos Vorazes) e conta a história de dois irmãos que vivem na década de 1990, David e Jennifer, interpretados por Tobey Maguire e Reese Witherspoon respectivamente, que são transportados para o seriado americano “Pleasantville”, ambientado na década de 1950, através de um controle remoto oferecido por um senhor que conserta aparelhos de televisão. Ao interagirem com os personagens daquele ambiente, as mudanças começam a ocorrer e alterar todo o universo do seriado.

http://www.youtube.com/watch?v=nrEAfkY9ods

Pessoalmente, acredito que esse seja um filme muito subestimado, não lembro dele ter recebido tanta atenção na época e nem vejo muitas pessoas o mencionando atualmente, o que é uma pena, porque é um dos filmes mais bonitos que já vi, o trabalho de fotografia é incrível (deve ter dado um trabalho absurdo), o roteiro é interessante e tem críticas afiadas sobre vários problemas sociais. Vou destacar aqui, através de imagens, alguns momentos que considero essenciais na trama, além de serem sequências maravilhosas da história do cinema, pra tentar evidenciar os motivos que fazem esse filme me emocionar mesmo o assistindo mil vezes.

Aviso: SPOILERS.

O filme inicia com o som de uma televisão passando por diversos canais, apresentando o título em um fundo com diversas cores que vão surgindo:

A partir daí, acompanhamos David, um adolescente que não tem sucesso com as garotas e é fã do seriado em questão, preparando-se para assistir uma maratona de Pleasantville, e sua irmã Jennifer, que mantém uma conversa monossilábica com um rapaz da sua escola enquanto o convida para assistir televisão na sua casa, já que a mãe de ambos irá passar o fim de semana fora com seu namorado mais novo. Vale ressaltar que, logo de início, somos apresentados ao contraste entre a cidade fictícia perfeita e a realidade dos anos 1990, na qual se fala em sala de aula sobre o aquecimento global, doenças transmissíveis e outras coisas desagradáveis.

Posteriormente, quando os irmãos discutem sobre quem irá assistir a televisão, acidentalmente quebram o controle remoto e, misteriosamente, surge à porta da casa deles um senhor, vivido por Don Knotts , oferecendo um estranho controle remoto. Essa sequência, em particular, já possui certa ironia devido a sua artificialidade, quando os trovões coincidem com o aumento da dramaticidade da cena. Ao continuar discutindo, os irmãos acidentalmente são transportados para o universo de Pleasantville, no papel de Bud e Mary Sue, cujos pais são Betty e George Parker ( Joan Allen e William H. Macy ) .

A cidade é “perfeita”, os valores morais são impecáveis, todos são educados, só existem pessoas brancas, não há lixo nas ruas, a temperatura máxima e mínima é sempre de 22º, não há incêndios (os bombeiros apenas resgatam gatos) nem chuva, o time de basquete da cidade nunca perdeu nem empatou uma partida, nos banheiros não há vasos sanitários, os casais dormem em camas separadas, os personagens não estão cientes da existência de outras cidades ou países e, claro, tudo é em preto e branco, sempre contrastando com a realidade dos anos 1990 e da própria vida de David.

A partir do momento em que os irmãos habitam aquele universo, as coisas começam a mudar, não apenas pela atitude rebelde de Jennifer/Mary Sue, que apresenta o sexo para os adolescentes do local, mas também inconscientemente por David/Bud, que não segue o roteiro como deveria, literalmente, a exemplo do que acontece com seu patrão Bill Johnson, interpretado por Jeff Daniels , que fica sem saber o que fazer quando Bud se atrasa e não está lá para fazer as coisas na exata ordem que o roteiro determina. Isso ocasiona, inclusive, o primeiro encontro de Bill e Betty, que naquele universo perfeito não se cruzavam, mas por uma distração de Bud, encontram-se e já se percebe uma mudança entre os dois, adiantando a relação que ambos terão futuramente.

As mudanças surtem efeito após a primeira noite entre Mary Sue e seu namorado Skip ( Paul Walker ) na “Lover’s Lane”, quando Skip está no carro e vê uma rosa vermelha (vermelha de verdade, como eles falam no filme). A cor vermelha, que pode significar perigo, representa em diversos outros momentos do filme as mudanças que ocorrem e a libertação daqueles personagens:

Essa cena, inclusive, me lembra o início de Veludo Azul, do David Lynch. Na verdade, a cidade de Pleasantville me remete ao diretor, pois aparenta ser a perfeita sociedade norte americana, quando na realidade é o oposto
Momento em que Bud/David defende Betty e fica colorido. A libertação de mais um personagem, mais um momento essencial, representado pela cor vermelha.

A personagem de Joan Allen é uma das mais importantes para a história, pois é uma dona de casa típica que, junto com Bill Johnson, começa a sentir a necessidade de mudar, de quebrar os padrões em que vive, talvez por isso as cartas dela apareçam vermelhas no início da “colorização” da cidade.

Já as mudanças para Bill surgem através da cor verde, especialmente após seu encontro com Betty , seus questionamentos sobre sua rotina e a revelação de sua paixão pela arte:

Após essa cena do carro verde do Bill, vemos a jukebox (verde e vemelha) e um plano sequência breve mostra um jovem com jaqueta de couro, no melhor estilo James Dean de ser, seguido de um beijo apaixonado de um casal (antes os casais iam para “Lover’s Lane” para ficar de mãos dadas) e um cenário completamente diferente na lanchonete que os jovens da cidade frequentam, com a música Lawdy Miss Clawdy, de Larry Williams, ao fundo, demonstrando, também, a evolução musical ao longo do filme, como ao utilizar Be-Bop-A-Lula de Gene Vicent durante a cena dos jovens fazendo sexo nos carros.

Depois que Mary Sue volta do primeiro encontro com o Skip, após Bill constatar que sua paixão é a arte, e depois da cidade ver a pintura de Betty, vemos ângulos diferenciados e que denotam o início da desordem que viria:

Aqui, após um plano sequência que me lembrou do Scorsese, Jennifer é a figura dominante, no centro/direita, ao contrário de David, resistente às mudanças e ações de sua irmã que desequilibrariam todo aquele universo.
Nesse momento, os “homens de bem” da cidade discutem sobre a primeira derrota do time de basquete da escola.
Nesse momento o caos já se instalou em Pleasantville.

Uma das várias sequências inspiradas do filme, mostra a mãe, Betty, na banheira, no momento em que se masturba pela primeira vez, então alguns objetos vão ficando coloridos e, ao chegar no clímax da cena, a árvore do lado de fora da casa pega fogo, em um mundo onde o fogo não existia e nem os bombeiros sabiam o que era.

Mais uma vez, o uso das mesmas cores ,onde está presente o verde, que é, inclusive, uma cor presente para o personagem Bill, vermelho e rosa.

Depois que Bud recebe um prêmio por apagar o fogo e é presenteado com os biscoitos de Margaret ( Marley Shelton ), ocorre uma das minhas sequências preferidas: Ele entra na lanchonete, ao som de Take Five do Dave Brubeck (vale ressaltar que, a partir dos anos 40, o jazz se populariza entre os jovens e é, inclusive, símbolo de transgressão, a exemplo do que é descrito nos livros da geração beat. Na sequência posterior, ouvimos So What, do Miles Davis) e todos estão curiosos pra saber como ele sabia o que era e como apagar o fogo e queriam saber como terminava o livro As Aventuras de Huckleberry Finn de Mark Twain, que se completava à medida que ele contava a história. Novamente, nessa cena as cores verde, do livro, do cardápio na mesa, das roupas de dois rapazes, e o rosa estão presentes.

Destaco aqui mais três sequências belíssimas:

  1. Quando Betty fica colorida e Bud/David amadurece bem na nossa frente, ao maquiar sua mãe assustada para que ninguém perceba a mudança:
http://www.youtube.com/watch?v=50IAOnaA3Ro

2. A cena em que Bud dá de presente um livro de arte para Bill

Acho essa cena emocionante porque é visível a paixão de Bill por aquilo, a montagem sobreposta dele e das pinturas denota que o tempo se alargou naquele momento e que ele perde a noção do que está a sua volta, olhando toda aquela beleza e todas aquelas cores. Além disso, a trilha sonora complementa essas belas imagens.

http://www.youtube.com/watch?v=TrCH-W8_fA8

Isso inspira Bill quando, após ele e Betty ficarem juntos, a fazer uma pintura que provoca ira nos habitantes de Pleasantville:

3. Bud e Margaret chegam à Lover’s Lane ao som de At Last, de Etta James. A cena fala por si só:

http://www.youtube.com/watch?v=4vmX00U13Jk
Quando David prova o “fruto proibido”, algo de que será acusado depois. Aqui, ele já faz parte da mudança e já interferiu na vida daqueles personagens sem se dar conta.
Cena da primeira chuva em Pleasantville.

Enquanto Bill e Betty tem sua primeira noite juntos, Bud vai pela primeira vez à Lover’s Lane e chove de verdade na cidade, além de ocorrer uma transformação na Jennifer, que praticamente se transforma em Mary Sue, e George, o pai, chega em casa e não tem luzes acesas, nem esposa, nem jantar (“No dinner??”) e ele vai ao encontro do prefeito no boliche, onde decidem tomar medidas drásticas contra o que está acontecendo.

Após as pessoas ficarem coloridas, o rock’n’roll e o jazz serem introduzidos, os jovens se beijarem em público e as bibliotecas se tornarem populares, o prefeito da cidade reúne alguns cidadãos em uma espécie de comissão, para preservar a moral e os bons costumes da cidade, o que leva a uma perseguição de tudo que é novo, diferente e do conhecimento de um mundo externo repleto de novas informações e conceitos. Só algumas músicas são permitidas e livros são banidos, o uso de guarda chuvas é proibido, só podem utilizar as cores preto, branco e cinza, dentre outras medidas, instalando, assim, o caos.

Livro sendo queimado. Vale ressaltar que o livro é vermelho, assim como os sinais de todas as mudanças que aconteceram.
Aviso que se vê em uma loja.
Código de conduta da cidade. Parece algo que tentam instituir no Brasil atualmente…
Segregação no julgamento, fazendo óbvia crítica ao racismo na década de 1950.

Resolve-se, então, realizar o julgamento de Bud e Bill, que pintaram um muro da cidade como forma de manifesto. Nesse momento, George percebe o quanto ama Betty e o prefeito, que sempre foi mostrado como superior, através de ângulos que o faziam mais assustador, é o único que vemos ficar colorido.

Essa cena me lembra Cidadão Kane. http://bit.ly/N45Iiz

Fica óbvio, portanto, que a mudança é inevitável e estava dentro de cada um dos personagens (no filme, a cor representa a mudança), cada um ficou colorido no seu tempo e, aquilo que parecia tão perfeito para David, transformou o pensamento dele de que as coisas são melhores se forem “agradáveis” como em Pleasantville. O diretor, Gary Ross, afirmou:

“This movie is about the fact that personal repression gives rise to larger political oppression…That when we’re afraid of certain things in ourselves or we’re afraid of change, we project those fears onto other things, and a lot of very ugly social situations can develop.” http://www.imdb.com/reviews/149/14904.html

Bônus:

Se você leu até aqui, é porque gostou do texto e/ou do filme, então aqui vão dois vídeos muito legais:

  1. Vídeo sobre os efeitos especiais do filme:
http://www.youtube.com/watch?v=Sw3I5knbACg

2. Clipe do Paul Thomas Anderson pra música Across the Universe da qual Fiona Apple fez cover dos Beatles e que remete à cena em que as pessoas quebram a lanchonete do Bill Johnson, no blog do Pablo Villaça: http://www4.cinemaemcena.com.br/diariodebordo/?p=1737

E aqui a trilha sonora do filme: http://www.allmusic.com/album/pleasantville-original-soundtrack-mw0000043887

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