O abismo do medo: o copo está meio vazio ou meio cheio?
Uma lista que revela o verdadeiro thriller psicológico por trás do filme “O abismo do medo”
Revi hoje o filme “O Abismo do medo” (The Descent, no original), um filme britânico, considerado como de terror, dirigido por Neil Marshall. O curioso fato dele ser um filme de terror bem comentado foi o que me levou a assisti-lo, há alguns anos e atrás, e reassisti-lo, agora. De fato, “O abismo do medo” é um filme diferente, intrigante e provocativo, embora não muito “assustador”. Não acho que a categoria “terror” lhe faça justiça inteiramente.
A intenção deste texto, no entanto, não é resenhar o filme, mas antes, acrescentar minhas próprias considerações à verdadeira batalha ideológica que é travada pelos fóruns online mundo a fora entre as pessoas que acreditam que os “monstros” apresentados na tela são totalmente ““reais”” e aqueles que defendem que eles são ““imaginários””.
(Se você inda não viu o filme e se importa em saber spoilers a essa altura do campeonato, não leia a partir daqui)
O que acontece é o seguinte: um grupo de amigas que costumava viver aventuras radicais se reúne para explorar uma caverna (teoricamente, turística), como forma de celebrarem a amizade e se divertirem. Elas são lideradas por Juno, uma exploradora experiente que depois se mostra totalmente egomaníaca quando revela que enganou todo mundo, levando-as, na verdade, para uma caverna recém descoberta que nunca havia sido explorada.
A partir daí, o grupo tenta achar uma saída do local, mas as coisas vão se complicar, porque uma delas, Sarah, que recentemente sofrera a perda do marido e da filha e ainda luta com a depressão, se encontra emocionalmente fragilizada. Em determinado momento, as amigas percebem que não estão sozinhas na caverna e começam a tentar fugir de uns “bichos humanóides” que querem atacá-las. A maioria delas não sobrevive e, ao final do filme, encontramos uma Juno machucada, abandonada para morrer num ataque de “predadores” e Sarah completamente delusional e perdida.
É aí que começa uma polêmica divergência que poderia muito bem ser descrita como o conflito entre evolucionistas e criacionistas, religiosos e ateus, Tomé e Maria Madalena. Os fóruns se dividem entre as pessoas que acham que os “bichos” são completamente reais e os que vêem neles uma manifestação psicológica delirante, uma metáfora para o processo de “decaimento” mental e emocional da protagonista Sarah, que teria matado as amigas e inventado os “monstros” como uma forma subconsciente de lidar com o que fez.
Bom amigos, eu não sou nenhuma autoridade em interpretação de texto, mas já estudei certa vez que, para a teoria literária mais creditada, as obras artísticas tem uma essencial “plurivocidade de sentidos”, o que quer dizer que guardam consigo diversas possibilidades interpretativas igualmente válidas.
Para essa corrente, chamada de “interpretacionista”, mais do que encontrar “o verdadeiro” significado de uma obra, interpretar seria delimitar interpretações possíveis e impossíveis. A partir daí, todas as interpretações possíveis seriam, então, corretas. Com isso em mente - deixo claro desde já -, deveríamos concluir que ambas as teorias sobre o filme são igualmente corretas, porque são possíveis (Viu? Não precisam me xingar nos comentários não!).
Por outro lado, minha intenção com este texto é apresentar algumas considerações que me fazem acreditar que a segunda interpretação, aquela dos monstros imaginários, é mais correta.
- O tempo de tela da personagem Sarah
As cenas de um filme ali estão por serem indispensáveis em oposição ao texto que pode se permitir acrescentar detalhes de caracterização psicológica mesmo que não sejam necessários.
No caso, a história inicia mostrando o acidente que a família de Sarah sofre e também o romance secreto entre Paul (marido) e Juno e depois ainda dispende um longo tempo mostrando como essa tragédia fragilizou o estado mental da personagem, que continua tendo uma espécie de sonho delirante com o bolo de aniversário da filha, chegando a dar um close no momento em que ela toma remédios antes de ir para a caverna. Ademais, o discurso das amigas em relação a ela é sempre de preocupação: “Você está bem?”, “Você se recuperou?”, “Você não sabe pelo que ela passou”, “Isso não vai ser bom pra Sarah”.
Se a intenção do roteiro fosse simplesmente mostrar como um tipo de morador feroz e assustador de uma caverna desconhecida ataca e mata um grupo de amigas, não haveria a necessidade de deixar tão claro o estado mental de Sarah, que sequer era a exploradora mais experiente ou corajosa do grupo. Aliás, a depressão é a única característica que nos é mostrada em relação a ela, enquanto as outras amigas apresentam um grupo de habilidades muito mais afins com a caverna: conhecimentos médicos, coragem, experiência, força, agilidade, uso de equipamentos, etc.
2. O comportamento de Sarah
Mais de uma vez o roteiro nos mostra que Sarah age de maneira muito diferente do que as amigas. Durante a parte mais lenta do filme, ela continuamente se afasta do grupo - mesmo enquanto as outras fazem uma pausa para comer, é “atacada” por morcegos, ouve risadas, fica presa numa passagem em que todas conseguiram passar. Além disso, após o ataque inicial dos bichos, Sarah é a única personagem que fica sozinha até o fim do filme. Assim, é clara a intenção de nos mostrar que ela é diferente.
3. A escolha dos sintomas causados por cavernas
Enquanto as amigas fazem a trilha que vai dar na caverna, um pouco antes de passarem pelos ossos de um bicho morto, a personagem Rebecca avisa a irmã de que:
“Você pode ficar desidratada, desorientada, claustrofóbica, ter ataque de pânico, paranoia, alucinações, deterioração visual e auditiva”.
Revendo o filme, essa fala realmente soa como um aviso do que virá. (Observe que ela poderia ter escolhido quaisquer outras informações sobre cavernas para alertar a irmã — fauna, flora, expedições e exploradores famosos, altitude, geografia, etc — mas escolheu apenas estas).
4. O início da “parte rápida”
O filme se divide entre a parte inicial, mais lenta, e a parte em que os ataques começam, que é mais rápida. Esta última se dá logo após o momento em que Sarah vê o “monstro” pela primeira vez. Ela diz para as amigas que viu uma pessoa, que já vinha com a sensação antes, mas que agora tem certeza. Um tempo depois, um barulho assusta as amigas, elas começam a fugir até que uma delas avisa Juno para deixar o sinalizador para trás. É só depois que elas estão no escuro total que um deles aparece claramente na tela. Sarah é a primeira a correr, escorrega, cai num tipo de buraco e bate a cabeça. Enquanto ela corre, a tela se divide para mostrar a fuga e o ataque à Holly.
Pra mim, esse duplo movimento da câmera poderia representar a cisão dentro da mente da própria personagem: enquanto a parte “monstro” ataca, a parte “humana” foge e se esconde, presa, numa espécie de buraco, para onde, curiosamente, o corpo de Holly é levado após o ataque. Conveniente?
O que dizer do delírio que Sarah experimenta ao acordar?
Outro fato curioso é que as amigas só começam a ver os monstros depois da sugestão de Sarah e quando estão no escuro total. Combinando esses fatos com o alerta que Rebecca fez para a irmã antes de entrarem no local, é razoável interpretar que, após um longo período de esforço físico, tensão intensa e privação de luz, o grupo começou a experimentar paranoia, alucinações, deterioração visual e auditiva, as quais tornam possível ver os “monstros”.
5. O grito
Após encontrar Beth e descobrir (conscientemente, pelo menos) que o marido a traía com Juno, Sarah tem um momento bipolar em que passa da expressão total de desolação ao semblante assassino, enquanto, num ímpeto, chuta a cabeça de um “monstro criança”. Até aquele momento, ela não tinha atacado nenhum deles. Em seguida, ocorre a clássica cena em que a personagem luta com a “monstro mãe” numa piscina de sangue, levanta e ataca ferozmente o “monstro pai”. Nesse momento, coberta de sangue, ela urra. A câmera corta para as amigas, que ouvem, no mesmo momento, um grito de “monstro”.
6. A morte de Sam
A maneira como a irmã de Rebecca morre confirma a hipótese de que o grupo estava experimentando um tipo de paranoia coletiva. Analisando com calma, no momento em que ela começa a travessia do buraco, a expressão no rosto de Juno e da irmã é de espanto e incredulidade. Elas dizem que ela não tem corda suficiente para passar e está perto o suficiente para voltar, mas ela não dá a mínima bola para esses conselhos. Em determinado momento, pega uma faca, suas pupilas estão dilatadas, ela está vendo um dos monstros logo acima dela, mas a expressão das amigas não condiz com o que vemos na tela:
Elas não tentam ajudá-la, embora estejam perto, tampouco parecem ter medo do monstro que nós vemos claramente acima delas. Na verdade, elas estão incrédulas no que Sam está fazendo. Ela morre por causa de um corte no pescoço, mas quem tinha a faca na mão era ela e não o bicho.
7. A piscina de sangue
Esse é um argumento sutil, mas ainda válido. Existiria a possibilidade de haver, de fato, uma piscina tão volumosa de sangue naquela caverna? Funda o suficiente para que Sarah mergulhasse? Ou a possibilidade de o sangue ser metafórico, logo após Sarah matar a família de monstros (reflexo da sua própria) e um pouco antes de Rebecca morrer e da luta entre Sarah e Juno, é mais significativa para a história? Ela estava coberta por sangue de todas as perdas que sofrera e causara e após tomar consciência da traição do marido com a amiga, conseguia suportar aquilo melhor.
8. O fim
Após ferir Juno, Sara foge, deixando-a sozinha, para morrer. Ela deita e fecha os olhos. Em seguida, parece que consegue achar uma saída daquele horror. Mas, para sair da caverna, Sarah tem que passar por uma pilha de ossos.
A metáfora aqui é clara, ainda reforçada quando descobrimos que essa pretensa fuga tinha sidoum sonho. O inconsciente de Sarah estava nos contando o que ela acreditava que precisaria fazer para sair dali.
De volta à realidade, nos momentos finais, Sarah volta a sonhar com o bolo de aniversário da filha, mas dessa vez a criança parece estar realmente na caverna, comprovando seu estado delirante. A câmera se afasta para nos dar a perspectiva do que acontecia com Sarah.
A maneira como a cena final é conduzida funciona para mostrar o reflexo perfeito da mente da personagem, absolutamente psicótica e paranoica. A medida que a câmera se afasta, passamos a tomar consciência do “decaimento” psicológico de Sarah e começamos a ouvir o barulho dos bichos, mas não vê-los. Os bichos estão ali, nós sabemos, mas na mente de Sarah e não nas paredes da caverna.
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