Henry orando no monte das oliveiras?

Eraserhead for dummies: Uma explicação do filme

E uma lista que revela o simbolismo bíblico por trás de Eraserhead

Ana Casilas
Published in
7 min readJun 10, 2015

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Antes de assistir Eraserhead pela primeira vez, eu imaginava que não veria nenhuma cena com sequência lógica. Era o medo que me colocavam os portais de cinema e os comentários dos amigos. “Eraserhead é uma viagem”, eles diziam. “Você não vai entender nada”. Foi assim que eu liguei meu televisor, um misto de medo e resignação, “tudo bem”, eu pensava, “vamos ver isso aqui mesmo assim”. E eu estava em frente a uma grata surpresa.

Ainda que a montagem das cenas e o surrealismo do enredo — marcas características do universo de David Lynch, aliás — façam do filme um razoável desafio, não se desespere, leitor (!). É possível encontrar ordem no caos.

Filme visto, hora de vasculhar a internet por detalhes, teorias conspiratórias, histórias de bastidores, não é mesmo? Bom, no caso de Eraserhead, minha pesquisa *detalhada* encontrou resenhas que faziam o melhor para comentar elementos do enredo, sobretudo estéticos, mas que deixavam de abordar a questão que aflige * 90%* dos corações quando que terminam de ver esta obra: o que foi que eu acabei de ver?

Pensando nisso, elaborei uma pequena e humilde explicação em forma de lista a fim de socorrer você que acabou de assistir Eraserhead e está procurando o sentido da vida, ou que está morrendo de vontade de assistir, mas tem medo de não entender nada (alou, David Lynch):

Plano 1. O tema do filme

Vejamos que pistas nos dão a sinopse fornecida pelo portal AdoroCinema:

“Primeira longa-metragem de David Lynch, o longa aborda uma desoladora cidade industrial onde vive Henry Spencer (Jack Nance). Ele tem uma namorada, Mary X (Charlotte Stewart), e um filho mutante que não para de chorar “

A partir desse trecho, podemos entender o plano principal de sentido da narrativa, o qual trata, simplesmente, da chegada repentina de um filho mutante (a gravidez durou 4 semanas) na vida de um casal, Henry e Mary.

Além de repentina, a gravidez não vem em boa-hora, porque o casal está estremecido e Henry parece desinteressado — apenas algumas cenas antes de descobrir a paternidade, ele acabava de conhecer e se interessar pela vizinha.

Mesmo assim, com o fim da gravidez, Mary se muda para o pequeno apartamento de Henry, onde eles ensaiam uma tentativa de cuidar do filho. O problema é que a criança não para de chorar e não se alimenta, o que leva os pais à exaustão, até que Mary foge, deixando Henry e o bebê para trás.

Esse pedaço da história, facilmente compreendido pelo espectador, deixa entrever uma cisão narrativa entre o que está na tela e no mundo dos fatos e aquilo que está na tela como metáfora.

Explico: David Lynch costuma reunir realidade e fantasia, de forma que a imagem que nós enxergamos carrega ambos os signos. O melhor exemplo disso é a aparência do filho de Henry e Mary: para nós, sua aparência é grotesca, como a de um monstro, mas os personagens não reagem a ela. Esse fato cria uma tensão para o espectador, mas em termos de narrativa, pode significar que o bebê, na realidade dos personagens, tem uma aparência normal.

Assim, a aparência do bebê seria um reflexo narrativo da forma como Henry enxerga a paternidade e, por extensão, seu filho. A feiura do bebê seria a feiúra de Henry refletida, fazendo com que ele carregue o signo da realidade e da fantasia, ao mesmo tempo.

Com isso em mente, é fácil concluir que o filme está falando de um homem que tem horror à paternidade e que se sente invadido e sufocado com a possibilidade de ser pai e marido num casamento morno. A distopia do cenário reforça a desolação pessoal do personagem: tudo naquela situação é para ele horror, inclusive o desejo que ele sente pela vizinha e a repressão do desejo que sua situação exige. Ele está sufocando, como nos é revelado pela janela do seu quarto, que dá numa parede.

A fuga de Mary confirma a relação entre a aparência grotesca do bebê e o conjunto dos sentimentos que Henry experimenta, já que ela pode simplesmente pegar as suas malas e partir, enquanto que ele está confinado àquela situação, à sua própria crise existencial.

Dentro desse conjunto interpretativo, o homem-das-alavancas pode ser uma alegoria para representar o próprio Henry, que começa o filme sem controle sobre sua própria vida — o controle está com quem controla as alavancas — e que, após destruir o bebê, destrói também o homem que antes o controlava, ganhando, portanto, o poder sobre si próprio.

Plano 2. O ambiente distópico

Os elementos abordados no que chamei aqui de plano 1 são dificilmente controversíveis, exatamente por tratarem do que está exposto de forma clara no roteiro. Para muitas pessoas, eles contém todo o sentido do filme.

No entanto, acredito que exista ainda um outro plano de história se desenvolvendo por sobre essa ideia principal, e que é mais abrangente e estrutural. Esse outro plano está diretamente relacionado ao ambiente distópico em que o filme ocorre e também aos fatos que se dão na metade final da história.

Eu resumiria a minha teoria da seguinte maneira: o bebê é o anticristo.

David Lynch é um diretor de simbologias e, no caso de Eraserhead, é o simbolismo bíblico que chama atenção:

  1. A começar pelo óbvio, o nome da mulher com quem Henry tem um filho é Mary, uma moça loira e delicada.

2. A outra moça loira do filme (que está presa dentro do aquecedor) diz a Henry que “No paraíso, everything is fine” (tudo está bem).

3. O lugar em que Henry guarda a “larva” que recebe pelo correio lembra fortemente um sacrário.

4. A planta morta ao lado da sua cama, lembra um ramo de oliveiras

Repare no destaque de luz desta cena: Henry, a planta (um ramo de oliveiras?) e o receptáculo (um sacrário?)

Além disso, alguns momentos antes da cena em que a moça-que-vive-no aquecedor aparece dançando, a câmera se desloca lentamente para dentro do aparelho, até focalizar a seguinte imagem:

Combinado a todos esses elementos bíblicos, está o fato de que a oposição entre o bem e o mal, a luz e a sombra, são uma constante no trabalho do diretor.

Então, o que isso representa para a história?

A cidade em que Henry vive é claramente distópica, sem cor, inclusive, e onde um gás aparece preenchendo todas as cenas externas, pois ela se encontra dominada pelo mal, sendo que a sua personificação é o diabo, ou o homem-das-alavancas.

Esse homem controla alavancas, numa cidade em que todos os ambientes internos são perpassados por canos, e onde um gás preenche os espaços abertos. Durante a icônica cena do jantar, nós ainda ouvimos o pai de Mary, um encanador, descrever como seus joelhos ficaram tortos “por culpa desses malditos canos” — aparentemente enquanto ele os instalava por toda a cidade. Coincidência? Pois é justamente dentro dos canos de aquecimento da casa de Henry que a moça-do-aquecedor se encontra presa.

O que quero dizer é que existe na cidade do filme um jogo de poder entre o bem e o mal, em que este último venceu, tendo mandado instalar canos por toda a parte, para que nele circulasse um tipo de gás que leva os cidadão a se encontrarem com os seus piores medos (a paternidade, para Henry).

Quando eles sucumbem ao mal (no caso de Henry, quando ele se rende ao desejo pela vizinha), suas cabeças explodem e são usadas para fabricar borracha (eraserheads, ou cabeças de borracha). Dessa forma, o homem-das-alavancas fortalece seu próprio poder, ao substituir a consciência das pessoas da cidade pela semente do pecado.

Falando nisso, a “larva” que Henry recebe pelo correio para alimentar o filho lembra fortemente uma semente. Ela já havia aparecido no começo da película para representar a concepção do bebê, e mais tarde se transformaria naquela espécie de banheira onde Henry e a vizinha fazem sexo.

Em suma, isso quer dizer que o alimento desejado pelo bebê não é a semente em si, mas sua utilização como uma semente para algo pecaminoso. Quando Henry finalmente sucumbe ao desejo, a larva some, e sua própria cabeça também, nascendo no lugar justamente a cabeça do bebê-monstro.

Conclusão

Combinando ambos os planos de sentido do filme, o plano 1 fica ressignificado, pois o bebê deixa de ser mera aberração física ou narrativa, e passa a ser uma espécie de provação, um enviado do mal e que deseja dominar toda a cidade — uma espécie de anticristo.

Por isso, quando o monstro-bebê é assassinado por Henry, num ato de rebeldia improvável, nós vemos queimar as alavancas do homem-da-alavanca. Alguém, afinal, conseguira quebrar a dinâmica daquele processo, ou seja, alguém afinal vencera o mal.

Isso é importante, pois representa um ponto em que alguém efetivamente quis romper o estado de degradação moral da cidade e agiu efetivamente para isso, deixando a postura passiva generalizada. Dessa forma, a moça do aquecedor consegue se libertar do aparelho, pois finalmente o bem poderia se restaurar na cidade.

O homem-da-alavanca fora destruído e, então, Henry e ela se abraçam, aliviados — pois agora everything is fine.

Então esse desejo, tendo concebido, dá à luz o pecado, e o pecado, após ser consumado, gera a morte (Tiago 1:15).

David Lynch já falou algumas vezes que Eraserhead seria seu filme mais espiritual. Segundo ele, uma passagem bíblica fez com que ele compreendesse totalmente o sentido do filme, e muitas pessoas especulam que o trecho acima poderia ser exatamente isso.

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