Paris, Texas de Wim Wenders e porque a vida como ela é é muito mais dolorosa

Ana Casilas
Ci- ne- ma
Published in
5 min readDec 8, 2015

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De vez em quando, o cinema proporciona um momento monstruoso. Faz bem parar alguns segundos para celebrá-lo na inteireza.

Nastassja Kinski na cena do peep show

A imagem de Nastassja Kinski nessa cena é icônica e, não à toa, estampa os cartazes do filme. É como o pequeno vislumbre de um mistério insondável, capturado em frame, mas desenvolvido durante toda a cena para penetrar fundo e capturar-nos a cada gesto da personagem.

Deixo a imagem aqui, para nos abençoar ou amaldiçoar, como queira.

Não pretendo fazer uma espécie de resenha ou análise do filme, porque muitas outras pessoas mais qualificadas já o fizeram antes de mim e ele é tão colossal que é quase uma tarefa desumana tentá-lo.

Assistir Paris, Texas dói. E digo isso não porque o filme seja muito lento (boa parte das suas quase 3 horas de duração são de longos silêncios e tomadas abertas), mas sim em razão da delicadeza extrema com que as personagens são construídas. E sim, a delicadeza faz doer.

Por um certo viés, o ritmo da história é um elemento essencial para construir essa delicadeza que se vê estampada nas relações humanas que são inicialmente refletidas e depois construídas durante a história. Digo que são posteriormente construídas porque em determinado momento nós, na condição de espectador, passamos a reconstruir junto com o protagonista as suas antigas relações cujos detalhes ele esqueceu, mas se esforça por reconstituir.

Nós não sabemos quase nada a respeito dos microcosmos afetivos da família que nos é apresentada e da qual Travis faz parte, mas tampouco ele o sabe e, enquanto reaprende a ser irmão, cunhado e pai, nós aprendemos com ele sobre quem são e como amar aquelas pessoas. Na tela, isso leva tempo, e o desacelerar da narrativa tira-nos da nossa zona de conforto e passa a exigir também uma postura mais ativa em relação à história.

Os clichês em filmes têm uma importância estrutural: são capazes de dizer ao espectador tudo ou quase tudo que ele precisa saber sobre uma(s) personagem no menor tempo possível, através da repetição de signos cujos significados já são amplamente conhecidos. Assim, em pouco tempo de tela podemos saber quem é o mocinho, quem é o violão, quem errou e porquê. Usam-se situações comuns e arquétipos de personagens para evocar significados e agilizar a narrativa, facilitar a compreensão, etc. Do contrário, tomaria muito tempo.

E por isso tempo é fundamental em Paris, Texas, um filme sem vilões, mas também sem mocinhos. Com uma delicadeza ímpar, a combinação entre o ritmo da narrativa, a trilha sonora e o jogo de luz faz com que os personagens que nos são apresentados ganhem vida e tomem a forma da vida cotidiana, “a vida como ela é”, seja nos momentos provincianos de uma família no subúrbio americano, seja na forma não estereotipada com que Jane apresenta-se na cabine de peep show.

O conceito de uma história sem vilões, embora não seja a estrutura narrativa típica, vá lá, já não é tão revolucionário em tempos de anti-heróis. No entanto, a originalidade de Wenders está em que suas personagens não são uma espécie de arquétipo liberal-individualista, homem racional-médio “situacionista” que vive na linha entre o bem e o mal baseado unicamente nas suas necessidades. Ao contrário, as personagens de Wenders são profundamente éticas e emocionais, de uma forma complexa como tão somente o é a realidade.

É a ética das personagens que faz doer.

Walt foi abandonado pelo irmão, cujo filho teve de criar, durante 4 anos, porém não hesita um segundo sequer em correr ao deserto para resgatá-lo, mesmo que isso implique a possibilidade real de perder o sobrinho que agora cria como filho. Pelo contrário, quando questionado pela esposa sobre o que dizer à criança, ele responde certeiro: diga a verdade.

Anne cria o filho de seu cunhado como seu há 4 anos, além de mediar uma complexa relação familiar entre os pais da criança dentre todas as outras responsabilidade que acumula como mãe e esposa. Quando Travis reaparece, ela é tomada de medo de perder o filho, mas ainda assim cobre o cunhado de cuidados maternais genuínos enquanto ele se hospeda em sua casa.

Por outro lado, as personagens são contrastadas com atos imperdoáveis do passado, com momentos de mesquinhez, de medo, de impaciência, de ingratidão. Anne é generosa, mas culpa o marido por incentivar Travis a se reaproximar o filho. Walt por vezes mostra-se insensível e distante, vaidoso inclusive. Hunter é incrivelmente amoroso e inteligente, mas não hesita em abandonar os tios. Jane divide-se entre o compromisso e o abandono ao filho. Travis empenha-se na redenção, tão somente para reencontrar seu destino errante e solitário.

E por assim em diante, Wenders nos desafia ao perigo do reconhecimento: quando me reconheço no outro, não posso demonizá-lo, excluí-lo, segregá-lo. Nesse contexto, a dor de um é a dor de todos e não existe uma hierarquia de distribuição da felicidade. A humanidade deixa de ser um status atribuído a uma categoria de pessoas e passa a ser a matéria que nos constitui a todos, igualmente providos e desprovidos de divindade.

Fazendo isso, Paris, Texas se aproxima o tanto quanto pode a ficção da vida como ela é: complexa, sempre, apesar das tentativas simplistas que recorremos a todo momento para categorizar a existência no eterno dilema entre bons, ruins e selvagens.

  • Deixo um link para o último encontro entre Travis e Jane na cabine de peep show. É de cortar o coração e encher os olhos.

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