Alan Wake 2 | Review

Uma aula de narrativa

Felipe Storino
Cinema & Outras Drogas
5 min readJan 8, 2024

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De tempos em tempos ressurge na internet a discussão se jogos de videogame podem ou não ser considerados obras de arte. Para quem ainda vive no passado e acha que a resposta para esta dúvida é “não”, o conselho é jogar Alan Wake 2. Para contar a sua história, o mais recente lançamento da produtora Remedy utiliza não apenas a linguagem dos games, mas também outras formas de arte, como poesia, cinema, literatura e música. O resultado final é uma obra-prima da narrativa poucas vezes vista em qualquer mídia.

Continuação direta do primeiro Alan Wake, de 2010, o jogo mostra o protagonista ainda preso no Lugar Obscuro depois de 13 anos, sempre tentando escrever uma história que finalmente faça com que ele escape de lá. Ao mesmo tempo, a agente do FBI Saga Anderson chega na cidade de Brightfalls (cenário do primeiro jogo) para investigar uma série de assassinatos ritualísticos e acaba sendo envolvida na história de terror escrita por Alan Wake. Com isso, o jogo apresenta dois protagonistas e duas propostas diferentes de jogabilidade.

Com Saga o jogo se parece mais com um survival horror tradicional, com o jogador enfrentando criaturas sombrias e uma tensão constante. Além disso, os trechos com a personagem lembram muito o seriado True Detective e apresentam um sistema de investigação próprio. A qualquer momento o jogador pode acessar o Lugar Mental, uma sala na qual ficam os arquivos encontrados durante o jogo e uma parede onde Saga vai juntando informações coletadas durante a história, na tentativa de solucionar o caso que ela está investigando. E por se tratar de um lugar dentro da mente da personagem o jogo nunca pausa quando o acessamos, então nunca é uma boa ideia fazer isso em locais que possam ter inimigos por perto.

Já nos trechos jogados com Alan Wake a coisa parte mais para um terror psicológico, onde o que mais importa é o que se passa na cabeça do protagonista. Os sustos causados por inimigos surgindo do nada são bem menos constantes, no lugar deles os cenários estão sempre repletos de sombras caminhando. A maioria dessas sombras se dissipa depois de pouco tempo apontando a lanterna para elas, mas algumas são hostis e precisam ser enfrentadas com armas. A sensação de insegurança e de estar sempre sendo observado cria um clima de terror muito maior do que qualquer jump scare. E, assim como Saga, Alan também possui um lugar especial dentro da própria mente, chamado de Sala do Escritor. Nesse local o personagem pode reescrever certas partes da história que ele está seguindo, fazendo com que novos caminhos e pistas apareçam. É um sistema bem simples, mas que cumpre perfeitamente o papel de colocar o jogador na pele do escritor atormentado.

E se as partes jogadas com Saga Anderson possuem inspiração em histórias policiais, a inspiração mais óbvia para os trechos com Alan Wake é o cineasta David Lynch, principalmente Twin Peaks. Assim como o Black Lodge da série, o Lugar Obscuro onde Wake está preso possui uma lógica de sonho, onde tudo pode acontecer e nem tudo precisa fazer sentido. É aqui que o diretor Sam Lake e toda a equipe da Remedy se permitem todo tipo de piração e apresentam algumas das coisas mais criativas já vistas em um game. Além das mudanças repentinas de cenário, usando a Sala do Escritor, esses trechos são repletos de metalinguagem, cenas com atores reais, sobreposições de imagens enquanto caminhamos e diálogos que muitas vezes parecem conversar diretamente com o jogador. O objetivo aqui é nos deixar tão perdidos quanto o próprio protagonista e isso é alcançado de forma brilhante. Não vou falar o que acontece, mas tem uma sequência que com certeza já entrou para a história dos videogames. Quem jogou sabe muito bem que sequência é essa.

Eu poderia ainda escrever um parágrafo inteiro falando do quanto o design de som e os gráficos (os melhores dessa geração de consoles) do jogo são impressionantes, mas sinceramente isso pode ser conferido em qualquer vídeo do YouTube. Como dito no parágrafo de abertura, o mais impressionante aqui é a narrativa. Não é à toa que o jogo recebeu o prêmio de Melhor Narrativa no The Game Awards. Alan Wake 2 exige do jogador atenção a todos os detalhes, sejam os manuscritos encontrados pelo caminho, conversas dos NPCs, placas espalhadas pelos cenários ou as músicas que encerram cada capítulo. É um trabalho artístico fantástico e que vale uma rejogada porque é até difícil absorver todos detalhes da história jogando apenas uma vez. Inclusive, o verdadeiro final do jogo está no seu New Game Plus, chamado de Versão Final, que conta também com novos arquivos de texto e vídeo e alguns diálogos diferentes durante a jornada.

O jogo também oficializa a conexão envolvendo todas as produções da Remedy. Existem referências à Quantum Break, Max Payne e principalmente Control, com participação ativa do FBC (Federal Bureau of Control). E essa conexão é feita de modo a agradar tanto os fãs quanto os que nunca jogaram nada da produtora. A presença do FBC na história, por exemplo, é explicada dentro do próprio jogo, sem a necessidade de conhecer Control. Claro que para jogadores de longa data essa presença é ainda mais empolgante, além de nos deixar curiosos com o que a Remedy está planejando para o futuro do seu universo.

Alan Wake 2 pode não ter ganhado o prêmio de jogo do ano no The Game Awards, mas com certeza daqui a 20 anos ainda vai ser lembrado como um grande marco dos videogames. Com uma história intrigante, é um jogo que consegue um equilíbrio perfeito entre terror, ação, esquisitices e até humor. Com esta obra, o finlandês Sam Lake e a Remedy conseguem colocar seus nomes ao lado de outros gigante da indústria, como Hideo Kojima.

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Felipe Storino
Cinema & Outras Drogas

Redator de cinema, gibis e games na Mob Ground. Quando não está jogando, está assistindo filmes, séries ou lendo gibizinhos.