The Last Of Us Parte II

Um conto sobre ódio e vingança onde heróis e vilões se alternam de acordo com o ponto de vista

Felipe Storino
Cinema & Outras Drogas
10 min readJul 16, 2020

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O final do primeiro The Last of Us, de 2013, é uma obra prima. Depois de acompanharmos toda a jornada de Joel (Troy Baker) para que ele entregasse a jovem Ellie (Ashley Johnson) nas mãos de cientistas que iriam descobrir a cura para a praga que aflige a humanidade há 20 anos, vemos ele abrir mão de tudo isso para não perder a garota. Nesse processo Joel acaba matando todos no seu caminho, incluindo médicos e cientistas que acreditavam estar fazendo o que era certo. Um ato feito em nome do amor, sem dúvidas, mas também muito egoísta, já que ele sacrificou ali a esperança de um futuro menos caótico para a humanidade. Aquele final quando Joel mente para Ellie sobre o que aconteceu, com a tela escurecendo logo depois da jovem responder com um simples “ok”, é poderoso demais e não precisava de uma continuação. Porém, sete anos depois, a produtora Naughty Dog nos presenteia com The Last of Us Parte II, um jogo com uma história tão ou mais impactante que o primeiro. Se antes o tema era o amor, aqui temos o ódio e a vingança como força motivadora do agora trio de protagonistas: Joel, Ellie e Abby (Laura Bailey e Jocelyn Mettler). Com uma história tão poderosa e que me fez refletir por dias, o objetivo principal desse texto é justamente apresentar o que essa jornada significou pra mim, então obviamente estará cheio de spoilers. Recomendo fortemente que não leia caso ainda não tenha jogado o game.

Mostrando que a franquia vai muito além dos velhos clichês das histórias com zumbis, o criador e diretor do jogo, Neil Druckmann, já começa a nova empreitada matando Joel, o herói do jogo anterior. Não apenas isso, durante as primeiras horas da jornada nós ainda controlamos Abby, justamente a pessoa que vai matar Joel na frente da Ellie e de forma extremamente cruel. O que vemos a partir de então é a jornada de Ellie rumo à vingança cega, uma vingança que faz a pessoa perder qualquer perspectiva de certo ou errado, além de se perder no caminho. Um ódio cego que destrói a protagonista não apenas psicologicamente, mas também fisicamente. Uma jornada que nos faz questionar o tempo todo se o que estamos fazendo é correto, que nos faz até questionar se Joel era mesmo um herói. Aliás, em um mundo pós-apocalíptico movido à violência, existem heróis e vilões? Ou tudo depende do ponto de vista de cada um? Com esta sequência, a equipe da Naughty Dog nos convida a fazer um exercício de imaginação. E se o primeiro jogo fosse sobre um médico que está tentando achar a cura para a humanidade e, quando estava chegando perto, ele fosse assassinado por um homem insano? A filha desse médico, uma adolescente na casa dos 15 anos, não estaria certa ao buscar vingança?

The Last of us Parte II é um jogo extremamente denso e corajoso na história que planeja contar. Durante sua primeira metade acompanhamos Ellie indo ao fundo do poço para conseguir o que quer, matando pessoas com tanta crueldade que seus próprios companheiros de jornada muitas vezes questionam seus métodos. Não foram raras as vezes em que Dina (Cascina Caradonna), namorada de Ellie, exclamava coisas como “meu deus, Ellie, que horror” ou “isso era mesmo necessário?”. Ellie consegue ser ainda mais violenta do que o próprio Joel era no primeiro. Para ressaltar ainda mais essa mudança da protagonista, boa parte do jogo é com ela sozinha, ao contrário do primeiro, onde isso só acontecia no capítulo do Inverno. Aliás, essa decisão já mostra a competência de Neil Druckmann como diretor, já que a solidão neste jogo parece fazer uma rima temática com o Inverno mencionado anteriormente, capítulo no qual Ellie perde sua inocência infantil ao se entregar ao ódio e matar David (Nolan North) com uma violência poucas vezes vista em um videogame.

Porém, mesmo com este descontrole da personagem, nas primeiras horas de jogo é difícil não se entregar ao prazer da matança, afinal, eles mataram nosso amado Joel. E fizeram isso sem explicação alguma, são vilões sem rosto e sem passado. Além disso, entre um capítulo e outro vemos flashbacks da vida de Joel e Ellie juntos na cidade de Jackson que mostram que eles realmente passaram a ter uma relação de pai e filha. E se no primeiro jogo tínhamos a linda cena das girafas, aqui somos apresentados a toda uma sequência no museu que culmina em uma bela cena dentro de um módulo espacial (Ellie sonhava em ser astronauta, lembra?). Uma cena que só não vai arrancar lágrimas dos corações mais duros. Com tudo isso, é impossível não ficar tão determinado quanto a Ellie em busca de vingança, pelo menos até a protagonista começar a fazer coisas que parecem questionáveis até para o jogador. Pra mim esse momento veio quando a garota tortura uma das aliadas de Abby e somos obrigados a participar da tortura apertando os botões na tela. Banhada em uma luz vermelha e filmada de baixo para cima, o que deixa Ellie ainda mais ameaçadora, ela parece até um dos vários personagens desprezíveis de algum filme do diretor Martin Scorcese. E é aí, quando parece que o jogo pretende contar apenas mais uma simples história de vingança, que a coisa toda dá um giro de 180 graus e somos obrigados a rever todos os nossos conceitos. A partir da metade do jogo passamos a controlar Abby e ver as coisas sob uma nova ótica. Uma decisão corajosa da Naughty Dog e que fez muita gente detestar o jogo, mas muito recompensadora para os jogadores com a mente aberta a novas experiências.

Confesso que no começo foi meio estranho controlar a pessoa que assassinou Joel, eu ficava pensando quando aquela parte ia acabar e eu poderia voltar para Ellie. Mas, sinceramente, conforme o tempo foi passando, eu me vi cada vez mais apegado à Abby e passei a me preocupar com a vida dela e dos seus aliados, mesmo sabendo qual seria o trágico destino da maioria deles (as jornadas das duas personagens acontecem em paralelo). Também não foi tão difícil assim entender os motivos que a levaram a matar Joel. Isso é facilitado pelo flashback que mostra Abby e o pai (o médico que Joel mata no final do primeiro jogo) procurando por um animal que está prestes a parir. É possível perceber que o médico é um homem bom e que realmente acreditava que podia salvar a humanidade através de uma cura para o cordyceps (fungo que causa as mutações no jogo). A relação de amor entre ele e Abby, ao mesmo tempo em que parece com a relação entre Joel e Ellie, se diferencia por mostrar duas pessoas que não tem medo de demonstrar seus sentimentos. Além disso, esses poucos minutos já são o suficiente para humanizar um personagem que nós matamos sem pensar muito no game de sete anos atrás. É preciso ter um coração de pedra para não se comover quando a jovem Abby vê o pai morto na sala de cirurgia. Do ponto de vista daquela criança Joel nunca foi um herói, mas sim o vilão, alguém que deixou uma criança órfã e que privou a humanidade de uma cura. Sejamos sinceros, se não fosse por toda a jornada do primeiro jogo nós também iríamos querer a morte de Joel. E é justamente esse o caso da Abby, ela não sabe nada sobre ele, apenas que é o assassino do pai dela.

Duas faces de uma mesma moeda. Em outras condições Ellie e Abby poderiam até ser amigas.

Finalmente entendendo o que a Naughty Dog pretende com The Last of Us Parte II, é interessante quando passamos a controlar a Abby no presente. Enquanto Ellie está em sua busca por vingança, Abby já concluiu a sua e isso não parece ter trazido um sentimento de satisfação, pelo contrário, ela parece sempre incomodada com o que fez. É como se uma personagem fosse o reflexo distorcido da outra. E conforme a jornada de Abby avança e ela conhece personagens como Lev (Ian Alexander) e sua irmã Yara (Victoria Grace), é interessante notar como a história dela passa a espelhar a de Joel lá no primeiro game: alguém em busca de redenção e que vai fazer de tudo para proteger as pessoas que ama, mesmo que tenha que matar várias outras pessoas no caminho. Assim, se começamos o jogo com sangue nos olhos querendo matar todo mundo, nesta segunda parte começa a bater uma certa tristeza por tudo que fizemos na primeira metade do game. E, durante a luta no teatro, é extremamente corajosa a decisão dos desenvolvedores de colocar Ellie como um reflexo de David (um dos vilões do primeiro jogo), enquanto controlamos Abby, naquele que é um dos momentos mais tensos de todo o jogo. Por um lado somos obrigados a apertar os botões para que o jogo prossiga, mas por outro queremos apenas que aquele espetáculo de violência pare e as duas personagens, que já perderam tanto até ali, possam seguir em frente com suas vidas.

No fim das contas, o jogo não é uma jornada fácil e nem agradável muitas vezes. É até difícil explicar, afinal, geralmente jogamos videogame para nos divertir, mas The Last of Us Parte II não é sobre diversão. É uma experiência narrativa que provavelmente vai destruir seu emocional ao final das suas mais de 30 horas de jogo. E mesmo assim você vai se sentir satisfeito. Assim como acontecia no primeiro, ele faz isso através de coisas que podem parecer pequenas, mas que são gigantes dentro um contexto geral. Como, por exemplo, a letra da música Future Days, que abre o game. Quando Joel canta o verso “se por acaso eu te perdesse, eu com certeza perderia a mim mesmo”, parece que ele está falando o quanto ama a Ellie, assim, é impactante perceber que esse trecho da canção também resume toda a jornada da protagonista durante o jogo. Não é a toa que sempre que pega um violão a personagem tenta tocar a música, numa tentativa de se manter próxima de Joel. Quem já perdeu alguém muito próximo com certeza vai se identificar com esse tipo de situação.

Os dois confrontos entre as duas protagonistas

Então, é impossível não se emocionar quando chegamos ao fim e percebemos que, depois de tanto ódio e violência, foi Ellie quem mais perdeu. Com dois dedos a menos na mão esquerda, ela fica impossibilitada de tocar violão, algo que era a última ligação que a jovem tinha com sua figura paterna. “Você só precisa de três dedos para segurar uma arma” diz um personagem em determinado momento do jogo. E no fim das contas foi o que sobrou para Ellie, que não pode mais tocar violão. A garota que era uma artista, compunha músicas e desenhava, se tornou apenas um instrumento de violência depois da sua jornada em busca de vingança. O ódio pela perda da filha havia consumido Joel, o que o fez matar pessoas inocentes para salvar Ellie; isso gerou o ódio de Abby que, por sua vez, gerou o ódio de Ellie. Um ciclo de violência que provavelmente continuaria através do jovem Lev se Ellie concluísse seu objetivo final. Assim, é até bonito que uma rápida lembrança de Joel, uma lembrança sobre perdão, seja o que faz com que Ellie resolva finalmente romper com esse ciclo, mesmo que fosse tarde demais para ela. Em uma jornada de ódio, violência e sangue, foi o amor que prevaleceu. Se isso foi o suficiente para salvar o que restou da alma de Ellie só o tempo dirá.

“If I ever were to lose you
I’d surely lose myself”

Com qualidades técnicas bem acima da média que os seus concorrentes e uma história corajosa, que foge do velho clichê do bem versus mal, The Last of Us Parte II não é apenas o melhor game da geração PS4. Ele ultrapassa a barreira dos videogames e é uma das melhores obras audiovisuais do século. Se ainda existe alguma dúvida de que videogames podem ser considerados obras de arte, este é o jogo para simplesmente acabar com essa dúvida de uma vez. Mesmo que ele não vença o prêmio de melhor jogo do ano (e tem tudo para vencer), The Last of Us Parte II já entrou para a história e daqui a 30 anos ainda será lembrado e celebrado pela indústria do entretenimento.

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Felipe Storino
Cinema & Outras Drogas

Redator de cinema, gibis e games na Mob Ground. Quando não está jogando, está assistindo filmes, séries ou lendo gibizinhos.