Corra, Lola, Corra: uma análise!
A bola é redonda. O jogo dura 90 minutos. Isso é um fato. Todo resto é teoria.
Sobre o filme
Corra, Lola, Corra narra a história de Manni, namorado de Lola e coletor de uma quadrilha, que, em meio ao desespero, perdeu uma alta quantia de dinheiro que deveria entregar aos seus patrões.
Depois de contar o fato a Lola, ela se compromete a ajudá-lo a recuperar o dinheiro em vinte minutos — tempo limite para a entrega do valor.
Elementos do filme
No início do filme, pode-se ouvir um som de sucessivos “tic-tac”, acompanhado da imagem de um objeto carrancudo, que nos passa a ideia de que algo está prestes a explodir — o que não deixa de ser verdade, pois é logo na cena seguinte que Manni, namorado de Lola, lhe dá a notícia sobre sua possível morte: afinal, ele tinha que entregar uma alta quantia de dinheiro (cem mil marcos) para seus chefes (gangsteres) em vinte minutos.
O objeto carrancudo, logo em seguida, nos revela ser o pêndulo de um relógio que marca o tempo em que a corrida de Lola começa — literalmente — a fim de salvá-lo.
Linguagens em Corra, Lola, Corra
Linguagem de games
Como na maior parte dos jogos de videogame, principalmente àqueles da época aproximada do filme (década de noventa), as personagens tem “direito” a três vidas para passar por uma série de obstáculos (incluindo enfrentar o “chefão”) e ir para a próxima fase — enquanto isso há muito dinamismo e uma ação que nos deixa preso até que consigamos concluir.
No filme a história não é diferente: Manni tem a missão de entregar uma quantia de dinheiro para seu chefe, porém acaba perdendo esse valor e conta com a ajuda de Lola para recuperar e se salvar da morte.
Lola passa pelos mesmos cenários em toda a história, cada personagem que passa por ela tem um leque de informações — como a senhora que passeia com o bebê, o que nos leva a crer que talvez estes sejam outros personagens jogáveis que carregam sua própria história e missão no jogo. Não é à toa que em uma história Lola saiba de algumas informações e em outras as ignore.
Linguagem de videoclipe
Logo após a estréia de “Corra, Lola, Corra” correu murmúrios entre os mais críticos dos expectadores a respeito da linguagem utilizada por este filme. Chegaram até a possibilitar sobre se tratar, na verdade, de um videoclipe. Tal nomeação não foi dada à toa, afinal as características tão presentes no filme também se fazem em um videoclipe — são eles:
- Um filme curto: a duração de um filme tem, em média, de duas horas a três horas. “Corra, Lola, Corra” tem apenas oitenta e um minutos.
- Elementos de música: durante todo o filme (com raras exceções, propositais) somos acompanhados por música eletrônica, batidas, etc.
- Interação: seja por letra e música e/ou música e imagem, a interação é constante. No longa não é diferente: a música condiz com o ritmo do filme (ou o filme condiz com a música?), complementa, as letras passam mensagens para a heroína, narram seus sentimentos, dando-lhe voz ao pensamento.
- Quanto a narração: os videoclipes não obedecem necessariamente à uma regra de narração, como é costume se ver na televisão — histórias com início, meio e fim bastante definidos. No filme encontramos o fato já ocorrido, a história é contada três vezes, com algumas mudanças em cada uma delas. Para cada novo personagem há um jogo de imagens, como se os apresentando. O fim do filme, não é necessariamente o fim da história. Há questões que são deixadas para nossa própria dedução.
- Jogo de câmeras e imagens: os movimentos são rápidos, se misturam aos momentos que acabaram de acontecer, que vão acontecer, acontecendo — se fundem a música e, assim, o ritmo está formado.
Repetições
Das palavras
LOLA: Fique calmo. O que houve? Me conte o que houve, certo? O que houve?
MANNI: Lola, ele vai me matar. Eu vou morrer.
LOLA: Pare! Estou ficando com medo. O que houve? Eles te pegaram?
MANNI: Não! Era o que faltava. Estava tudo indo bem. Os caras chegaram rápido, pagaram e pronto. Foi moleza! Passamos direto pela fronteira e me deixaram lá. Fui falar com um cara esquisito e terminamos rápido. Tudo pontual. Menos você. Você não estava lá.
LOLA: E então?
MANNI: Não havia nenhum telefone. Nem pude chamar um táxi, então peguei o metrô. No trem, um mendigo caiu no chão e, de repente, entraram uns inspetores. Eu sai, como sempre faço. Uma velha reação.
LOLA: A bolsa!
MANNI: A bolsa!
LOLA: A bolsa!
MANNI: A bolsa!
LOLA: A bolsa!
MANNI: A bolsa!
LOLA: A bolsa! A bolsa! A bolsa! A bolsa!
A repetição é um dos elementos mais marcantes do filme. Esse elemento nos ajuda a absorver e sentir a tensão transmitida pela história. Logo de início, temos o seguinte diálogo:
A repetição de palavras, mostrada no diálogo acima, exprime a reação das personagens em meio ao desespero.
A frase “a bolsa” repetida diversas vezes por ambos Manni e Lola em vários tons é uma reação normal quando estamos sob pressão.
Tal repetição, juntamente com a batida da trilha sonora — sobre o qual ainda falaremos — faz transferir o sentimento (em especial a tensão) das personagens para nós expectadores com tal sutileza e perfeição que faz nossos corações baterem mais acelerados e dividir com eles a tensão do momento vivido, como se estivéssemos lado a lado e fôssemos correr todos juntos para ajudá-los.
Esse fenômeno, utilizado desde o início do filme, é conhecido como sinestesia e tem exatamente essa função: nos fazer sentir, compreender mais facilmente aquilo que a história quer nos passar, ampliando a experiência e estreitar os laços entre produto (filme) e consumidor (expectador).
Das cenas
Cada escolha que fazemos, cada minuto que ficamos a mais (ou a menos) em algum lugar, as pessoas ao nosso redor, uma decisão que tomamos, alguma coisa que falemos, por menor que seja, qualquer ação pode mudar nosso destino.
Isto aparece claramente em “Corra, Lola, Corra”. O filme repete a história de Lola correndo para salvar a vida de Manni três vezes.
Em cada uma das recontagens, as escolhas dos protagonistas mudam o curso da história e nos apresenta um final que poderia ter sido, que retoma àquela velha pergunta “e se…?” — e que faz referência ao chamado efeito borboleta, parte inicial da Teoria do Caos: a teoria estabelece que uma pequena mudança ocorrida no início de um evento qualquer pode ter conseqüências desconhecidas no futuro, como o bater de asas de uma borboleta num extremo do globo, pode provocar uma tormenta no outro extremo em um intervalo de tempo.
Importante dizer que uma história complementa a outra. Por exemplo, na primeira história, Manni resolve assaltar o mercado e Lola, que chega logo em seguida, se vê em posse de uma arma. Nesta cena, ela não tinha a menor intimidade com o objeto.
Contudo, na história seguinte, quando ela viu como solução assaltar o próprio pai (presidente de um banco), já sabia usar uma arma com maestria.
Trilha Sonora
A trilha sonora tem grande valor sinestésico dentro do filme. Graças a ela, temos mistos de sensações: traz angústia, tensão, acelera a cena, cria suspense e passa mensagens para a protagonista em sua corrida em busca dos cem mil marcos — isto acontece, pois para cada cena há uma música com letra diferente.
As cenas, raras, de absoluto silêncio também tem seu valor, pois são os pontos altos de tensão e suspense dentro do longa — como na morte de Lola, logo após ter recebido o tiro de um policial. Como título de curiosidade, as músicas foram produzidas pelo próprio diretor (Tom Tykwer) para o filme e as letras das mesmas podem ser encontradas no fim deste projeto.
Ilustração
Todo filme é altamente ilustrado. Logo de início, conforme Lola explica o atraso que deu o pontapé inicial para o resto da história, a imagem do acontecido anteriormente se mostra em preto e branco conforme a narrativa da personagem.
O mesmo acontece quando Manni explica como perdera o dinheiro. Além disso, o dinamismo está muito presente nos desenhos. De certa forma, os desenhos ajudam a caracterizar o aspecto psicológico de Lola em cada história — usando como referência, principalmente, o rapaz com o cachorro na escada do prédio.
Se na primeira história, vemos uma Lola agitada, perdida e com medo; na terceira notamos o quão decidida e forte ela se encontra — com direito a vôo por cima deles e até a uma encarada.
Outras considerações
— Pare:
Nas duas primeiras histórias ocorre uma morte logo após o objetivo ser alcançado. Primeiro temos a morte de Lola que, após o assalto ao mercado, acabou levando um tiro de um policial. Depois desta cena, somos levados a um momento de discussão entre as personagens principais acerca do relacionamento — onde ela não pára de questioná-lo, se mostrando dependente da relação.
Vale a pena lembrar que nesta história, Lola também se mostra abalada pela atitude de rejeição do pai e amedontrada pelo rapaz com o cachorro na escada do prédio. Lola, então, sai correndo, acaba se precipitando no assalto liderado pelo namorado e termina morta — não é por acaso que, enquanto a cena da bolsa de dinheiro caindo, alternando com a cena do telefone também caindo, ela diz “Pare” e então a história volta.
— Vá em frente:
Em seguida, na segunda história, acontece a morte de Manni e mais uma vez somos levados ao momento de discussão entre as personagens sobre o relacionamento. Desta vez, o papel de inseguro fica na mão de Manni. Desde o início do filme, podemos perceber o quão dependente ele era de Lola: era ela quem o buscava após o trabalho, ele acabou perdendo o dinheiro por estar desesperado e sem chão (sem segurança) e neste momento ele liga para ela pedindo por ajuda (e, de uma certa forma, culpando-a pelo acontecimento).
Durante suas indagações, note que ele se mostra tão inseguro, que prevê acontecimentos para além da sua morte que não percebe o óbvio: que ele ainda não morreu — fato este que Lola o chama atenção. E então, mesmo depois de ter conseguido o dinheiro, ele não vê que o sinal estava aberto, não olhou para os lados, apenas atravessou a rua, ao encontro de Lola e acabou sendo atropelado por uma ambulância.
— Atenção:
A terceira história é a que mais se difere das outras. O Sr. Meyer evitou a colisão entre seu carro e dos ocupantes mal encarados do outro veículo — embora tenha se envolvido em outro acidente, mais tarde. Lola, tomada por uma espírito de foco e decisão ainda mais forte, passou por cima do rapaz com o cachorro da escada, não lhes dando a mínima.
Até tentou recorrer ao pai, mas chegou tarde demais. Em meio ao desespero e angústia, desejou que lhe ocorresse uma boa idéia, uma luz. Meio como mágica, no susto de quase um atropelamento, ela enxerga o Cassino e nele uma chance de conquistar o dinheiro.
— Roleta:
Na última história, Lola aposta no Cassino local sua última chance de salvar Manni. Ela se dirige à mesa da Roleta¹ e aposta no número vinte. A mais óbvia explicação para a escolha da personagem seria relacionar ao fato de que ela dispunha de apenas vinte minutos para arranjar os cem mil marcos necessários. Contudo, se paramos para analisar, tirando a introdução do filme, cada história (ou cada corrida) acontece em exatos vinte minutos.
¹ Embora muito presente nos cassinos norte-americanos, o jogo nasceu na Europa e é ainda muito prestigiado por lá. Importante dizer que não é um jogo para se ganhar dinheiro, inclusive há quem busque incansavelmente estratégias para fazer a bolinha cair no lugar certo. Como dito antes, Lola, aposta sempre no número vinte. Curioso dizer que este número faz parte da “Jogada dos Órfãos” assim como os números 17, 34, 6, 1, 14, 31, e 9. Fazendo uma rápida análise psicológica de Lola, é possível dizer que ela era diferente do restante da família, sem raízes muito fortes. Contudo, para pedir ajuda, uma das primeiras pessoas em quem pensou foi o pai. A figura materna era bastante ausente, presa em seu próprio mundo. Pode-se dizer que, de uma certa forma, Lola era órfã de mãe e, na altura em que a cena do Cassino ocorre, também se tornou órfã de pai — além de se encontrar sozinha para ajudar Manni.
— O futuro:
No fim do filme, logo depois de Manni ter entregue o dinheiro aos chefes e ter notado Lola com uma sacola na mão, ele pergunta o que ela estava carregando ali. Quando ele se dá conta do que a bolsa pode conter, há o som de uma máquina que acabara de tirar uma fotografia (como aparece em tantas vezes anteriores) e, então, o filme termina. Se o chefe percebeu quando um maço de cigarros desapareceu, o que será que aconteceria quando ele percebesse que, no mínimo, setenta marcos (valor que o mendigo gastara na bicicleta) haviam sido gastos? Lola poderia devolver o dinheiro, mas será que, ainda assim, Manni se salvaria da morte?