Anônimo (2021)

O sonho de liberdade americano ou filme de libertação

João Neto
Cineratus
3 min readApr 19, 2021

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O que John Wick começou foi um movimento bastante consciente com filmes de ação, ampliando o leque dos longas de artes marciais, numa homenagem anabolizada, caricata na maior parte do tempo, mas que criou uma lógica própria de relação com os espaços. Isso é algo que foi sendo aprimorado ao longo dos filmes, chegando em seu ápice no terceiro capítulo — eu realmente acho muito difícil que eles consigam superar o último filme lançado. Anônimo surge num ponto muito parecido, principalmente quando olhamos para a maneira como as cenas de ação são empregadas, mas tem propostas que estão além da reverência ao gênero. A fórmula aqui está aplicada mais como instrumento de liberdade, numa manifestação que ressoa nas noções do que é ser livre dentro da cultura norte americana, e menos como a ação pela ação.
Elegendo Hutch Mansell como protagonista — alguém com a cara de Bob Odenkirk, comum e inofensivo — partimos de uma vida de atos comezinhos e repetidos a esmo, numa cartilha de alienação auto-isoladora. Sua rotina é abalada quando ladrões invadem sua casa e, se sentindo culpado por não reagir, resolve recuperar alguns dos objetos levados, o que inevitavelmente o coloca em contato com a máfia russa.

A ideia do cidadão pacato e indiferente ao mundo, existindo em uma letargia que o salva da responsabilidades de assumir riscos, surge como uma representação debochada do estadunidense médio. Com uma rotina de trabalho e com a família estabelecida sem muitas interferências, Hutch personifica a prostração que resulta da “domesticação” do instinto. Ele acaba se tornando um paralelo muito consistente de uma sensação que pode ser coletiva, mas que conversa de forma individual com seu público.
Depois de estabelecer a abstração confortável do protagonista e inseri-lo num evento de reação em cadeia, vislumbramos o rompimento com a norma e a apropriação de um outro estereótipo, que não por acaso muito presente nos filmes do gênero: o homem que tem como princípio a violência e apenas ela. Essa revelação, que vem de um passado um tanto nebuloso do personagem, é estabelecida como uma forma de idealização do homem comum que, diante de um mundo que ele preferiu ignorar mas que o molesta continuamente, só consegue oferecer o sentimento de raiva, mimetizado em agressão, guardado durante tanto tempo.

Nesse ponto, a ação assume um papel de ilustrar a selvageria consciente e desenfreada que remontam a uma situação familiar, num reflexo de herança que foi passado do pai para os filhos, todos eles militares. É como se o que prevalecesse culturalmente naquela família fosse apenas essa orientação de hostilidade.
Menos inspirado que seu primo distante, John Wick, Anônimo até entende bem a geografia das cenas, mas coreografa suas lutas com a intenção de serem sujas e menos bonitas e estilizadas do que poderiam ser. Ainda assim há um bom uso das dos recursos à disposição de acordo com cada ambiente, o que garante ocasionalmente uma inovação constante nas suas possibilidades.
Anônimo tem como princípio reforçar o sonho de que um “ninguém”, qualquer um, pode ser essa figura destruidora e cansada de viver à sombra de seus desejos. É a porta aberta em que é possível acenar para os devaneios daquilo que se deseja ser ou da imagem que se deseja passar.

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João Neto
Cineratus

Formado em jornalismo, amante de cinema, mestrando em Comunicação Social.