Army of Dead: Invasão Em Las Vegas (2021)

O belicismo é o único meio possível

João Neto
Cineratus
4 min readMay 21, 2021

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Quando George Romero popularizou o filme de zumbis, dentro de um universo com regras próprias e que se tornaram referência para o imaginário coletivo, as histórias dessas criaturas iam de um contexto escapista até uma discussão mais aprofundada, seja sobre consumismo, racismo ou então moralidade. Snyder parece partir de um mesmo propósito, utilizando a temática para criar uma experiência sensorial instigante e estabelecer uma discussão sobre uma sociedade intimamente beligerante.
A trama se passa após um contágio zumbi infectar Las Vegas e a cidade ter sido isolada para interromper a propagação da endemia. Scott Ward, um ex-herói de guerra, recebe a proposta de invadir o local para resgatar 200 milhões de dólares presos em um dos cassinos. Pensando na possibilidade de utilizar o dinheiro para se reaproximar da filha, ele convoca uma equipe para realizar a extração antes que um ataque nuclear destrua a cidade.

Tudo gira em torno de um simbolismo que Snyder configura a partir de seus personagens e suas relações, além de um contexto político que volta e meia penetra a narrativa de maneira tangencial (o fato do presidente querer tornar o ataque a Las Vegas um show de fogos no 4 de julho suscita o estímulo a guerra como algo que fundamenta os EUA) . Essas metáforas se lançam em um terreno que parece caro ao diretor, uma vez que despontam em obras anteriores — problemas parentais discutidos em seu Liga da Justiça (2021), ganham outros contornos aqui, bem como as questões relacionadas a morte. Nosso protagonista, Scott, tem na dificuldade em se relacionar com sua filha um obstáculo inerente a sua natureza: ele é um homem de funções, aparentemente só sabe lidar com essa relação de assumir determinados exercícios (ele sabe agir como soldado, sabe agir como cozinheiro, mas não consegue lidar com algo que deveria ser espontâneo como a paternidade, o que o afasta quando as coisas não funcionam). Tanto que sua esperança em reatar os laços está completamente voltada para utilizar o dinheiro para abrir um restaurante e, assim, restabelecer o que sobrou de sua família.
Curiosamente há um contraponto proposto pelo diretor que cria nos zumbis, uma relação inversa, em que alguns deles, dotados de inteligência, fundaram uma espécie de sociedade marginalizada. Nessa nova experiência social, o zumbi alfa zela por certa ordem, além de um desejo de vivenciar algo que contradiz sua própria natureza de criatura morta-viva: criar por eles mesmos vida, numa estrutura familiar pertinente dentro dos costumes que iniciados naquele ambiente.

E aí o filme dispõe de uma abordagem que vai privilegiar um tom um tanto generalista — os personagens secundários reproduzem uma função meramente de arquétipos, ainda que Snyder tente vez ou outra aprofundar essa condição com dramas que surgem sem peso e não se sustentam — , que lida também com a própria ação como reflexo natural do filme de gênero, o que acaba corroborando com a ideia da essência de guerra que permeia individual e coletivamente esses personagens.
Isso tudo acaba funcionando dentro dessas lógicas complementares, uma interessada em apontar para significações e outra que está ali assumindo completamente sua função de cinema escapista por excelência. Entre tons sóbrios e de ficção anabolizada, todos os personagens acabam ligados por um contexto de guerra, do nós contra eles, em que duas sociedades em conflito estão fadadas a um combate eterno. Isso principalmente na relação dos humanos — o grupo todo é carregado de elementos aguerridos, o que lhes confere uma unidade — e menos presente no cotidiano dos zumbis.
Por fim, existe uma condição desconcertante, um tanto cômica e cafona, empregada pela trilha sonora que realça a trama e dá sentido aos estímulos da ação, filmada com a intenção de evidenciar a violência, mas que também serve como maneira de reconhecer que a sociedade dos mortos-vivos talvez, mesmo diante do elemento bizarro, funcione e se saia melhor que nossa vã tentativa de conviver humanamente.

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João Neto
Cineratus

Formado em jornalismo, amante de cinema, mestrando em Comunicação Social.