Bela Vingança (2020)

Jogo de aparências como força condutora

João Neto
Cineratus
3 min readFeb 18, 2021

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O cinema politicamente engajado tem tomado cada vez espaços maiores dentro do mercado mais convencional. Misturando comédia e suspense para lidar com questões como assédio, machismo e estupro, o filme de estreia de Emerald Fennell faz escolhas que o tornam menos óbvio e mais inventivo.
Sem muitas informações concretas sobre seu passado, somos apresentados a Cassie, uma jovem que aparentemente tinha um futuro promissor, mas que, depois de um evento inesperado, os rumos de sua vida mudaram inesperadamente. Agora ela vive seus dias tentando compensar os erros de seu passado.
A ideia de um filme vingança é instigante como proposta, por colocar essa figura feminina como um perigo potencial, mas é ainda mais surpreendente pelas escolhas formais como o faz. Se Carey Mulligan oferece um rosto inofensivo e porte físico modesto, isso ajuda a internalizar o seu vigor em caçar homens potencialmente nocivos. A primeira cena entrega a maleabilidade com que a personagem transita de uma “mulher indefesa” para “uma entidade consciente e violenta”.

Apesar da agressividade possível dentro da proposta, isso quase nunca está em tela de forma direta, a não ser quando implícito nos diálogos, gestos e no ato final em que a violência fica escancarada, no mais a hostilidade fica quase sempre fora da vista. Essa escolha em afastar o que pode ser materialmente chocante aproxima a noção de que as aparências são dissimuladas. E isso não se restringe apenas a protagonista, mas aos homens e mulheres que vão sendo introduzidos e, pouco a pouco, têm seu lado obscuro desnudado e revelado.
O cenário ajuda a concretizar essa investida neste mundo de artificialidade, na cafeteria, por exemplo, em que o que se vê é um ambiente ornamentado graciosamente, mas que abriga a protagonista em boa parte do tempo. A identidade visual delicada e gentil esconde a mulher obstinada e maquiavélica que vive criando jogos mentais com seus algozes, e agora vítimas, noite após noite. O próprio interior de seu quarto/casa é facilmente identificável nesse sentido. Então Fennell se apoia naquilo que pode sugerir para o público pelo imagético, e também pelo audível, com sua trilha sonora pontuada por momentos de inquietação e de pura cafonice confortável de comédia romântica adolescente, com direito a Paris Hilton e estética de videoclipe.

E se em algum momento o filme parece querer amenizar a jornada de Cassie numa espécie de redenção esvaziada de significado, mas que possa lhe devolver uma certa normalidade, isso se reverte no instante seguinte. Até nesse possível ponto de virada da trama para um apelo mais suave, há um jogo de aparências que não permite remissão convencional. A tragédia que afetou a personagem faz com que sua busca se torne tão trágica quanto, mas sem perder o elemento surpresa até o segundo final.
Como um trabalho inaugural como diretora, Fennell é surpreendentemente consciente de como lidar com a forma com que aborda e ilustra o seu roteiro. Promissor e cativante, politicamente alinhado com seu momento e, infelizmente, encontra ecos no Brasil de ontem e hoje.

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João Neto
Cineratus

Formado em jornalismo, amante de cinema, mestrando em Comunicação Social.