Judas e o Messias Negro (2021)

A revolução como tragédia inevitável

João Neto
Cineratus
3 min readMar 5, 2021

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Existe um tipo de trama que se consolidou no cinema hollywoodiano em que, alguém precisa se infiltrar em um determinado grupo com a finalidade de destruí-lo de dentro para fora, passando informações valiosas para seus algozes. Pocahontas, Avatar, são exemplos que utilizam essa mesma história em contextos diferentes. Em Judas e o Messias Negro há um enredo parecido, mas diferente dos moldes instituídos, no final, o infiltrado não se humaniza ou se comove com aqueles que tem de trucidar, ele só opera diante da lógica da qual faz parte.
O filme reconstitui os esforços do FBI para silenciar Fred Hampton e o movimento do Partido dos Panteras Negras, coagindo um criminoso de pequenos delitos chamado William O’Neal a se integrar ao movimento, desestabilizá-lo e vazar informações importantes.
Há uma seriedade muito evidente no trato dos personagens e em seus discursos como poucas vezes podem ser vistos no cinema mainstream. Essa característica sóbria também está presente na própria abordagem do diretor, Shaka King, que confere à unidade de seu filme uma rigidez que se rende aos fatos, sem grandes invencionices e acaba comprometendo uma evolução mais articulada de sua história. É possível notar um certo engessamento que torna tudo um pouco mais lento, menos dinâmico. Um retrato histórico fiel até demais.

Mas, tirando esse ponto, o restante corrobora para sua intenção. O título é muito significativo dos arquétipos propostos aqui. Fred Hempton sempre surge em tela como uma figura messiânica, que reúne pessoas para ouvir seus dizeres e encapsula um homem que está pronto para aceitar seu destino lutando por um ideal. O’Neal por sua vez reflete a figura que sempre parece oprimido pela culpa que carrega em trair a confiança do homem e do símbolo que foi Hampton, caminhando encurvado e aflito constantemente.
E ao avançar com essas duas figuras lutando lado a lado, mas em direções opostas, há de se esperar uma comoção, mesmo que breve, do inimigo infiltrado. Mas isso nunca chega. Não chega porque King está fazendo de seu filme uma captura histórica, ficcionalizada por sua construção, mas que nunca esquece sua natureza. Isso se reflete na tragédia anunciada e irrefreável que os fatos tem sobre essas pessoas. Há um certo paradoxo, é Hollywood, mas, ao mesmo tempo, não é. A redenção de O’Neal não chega e nunca chegará porque a vida não permitiu isso e Hampton morrerá ao final, porque é assim que as coisas são e tem que ser.

A luta pela emancipação do povo é vista como a luta da desventura, é o Mito de Sísifo, homem destinado a carregar uma pedra montanha acima, só para chegar ao topo e a pedra rolar outra vez para baixo e, assim, ele precisar reiniciar seu trabalho. A cada vitória, uma derrota que leva o movimento para o marco zero. A batalha contra o sistema prevê a interminável dedicação para o futuro brilhante que nunca chega, que é construído todos os dias, mas que nunca se realiza.
King é astuto para apontar para a essência do que foi, e do que ainda é, a guerra contra o sistema, e encaixa isso dentro de uma padrão narrativo já consagrado, apenas para destituí-lo do virtuosismo da redenção do algoz que se torna cumplice. Ele quebra o molde para encaixá-lo dentro da perversidade humana e do real.

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João Neto
Cineratus

Formado em jornalismo, amante de cinema, mestrando em Comunicação Social.