Martin Eden (2020)

Entre uma crise existencialista, a desilusão, o discurso político e o cinema italiano

João Neto
Cineratus
4 min readDec 31, 2020

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Olhar para o mundo, quando o mundo que conhecemos não é feito de belezas e esperanças, é difícil e pode levar à uma jornada tortuosa. Jack London fez de suas obras literárias uma perspectiva que não se dobrava para afagar sonhos, mas que insistentemente alimentava questões sobre a natureza da vida e suas dificuldades. Transportar esse sentimento, que mistura uma melancolia desimpedida e a urgência de sentir e pensar a realidade que os cerca, parece ser bastante difícil, mesmo diante de um meio como o cinema. Mas, Pietro Marcello, ainda assim, faz da adaptação do livro, transferindo o enredo para meados do século XX na Itália, um trabalho honesto e que tem fundamentalmente o que é mais íntimo do material original: o desencanto com o mundo quando se agarra o conhecimento.

Acompanhamos Martin Eden, um marinheiro, típico da classe proletária, que entra numa jornada autodidata de educação após se apaixonar por uma moça da burguesia italiana. Escrevendo e tentando viver de sua arte, ele tem de lidar com as diferenças de classe, além de seus próprios questionamentos sobre o mundo político que se torna cada vez mais presente.

O olhar de Marcello para o personagem e sua trajetória, que vai de um fascínio pelas possibilidades do mundo à frustração com a inviabilidade de recuperar esse mesmo encanto, é marcado, primeiro, por uma experimentação com a linguagem e, em seguida, por delinear sua forma dentro do que se constituiu o próprio cinema italiano. Suas imagens registram a vida daquele homem, que vai embrutecendo conforme toma consciência, capturando sua derrocada inevitável a partir de uma narrativa que é marcada por elipses de maneira deliberada. A isso ainda se soma uma transição entre uma progressão de eventos de causa e consequência, mas que são interrompidos para que surja em tela pequenos fragmentos que remetem ao tradicionalismo do documentário, o gênero que deu ao diretor reconhecimento. São imagens de registro de pessoas diante da uma perspectiva de banalidade corriqueira, mas que ajuda a povoar o mundo de Martin, confirmar sua identidade, sua inegável classe trabalhadora. Ele encontra nessa divagação um modo de sustentar tanto sua escolha narrativa, quanto um veículo para aprofundar as dimensões da existência de seu personagem. Nesse desenvolvimento o cinema italiano vai surgindo em tela, remetendo em estética e conceitos que foram caros aos grandes cineastas como Luchino Visconti e Pasolini, que tematicamente também eram interessados pelos dilemas do proletariado e que partiam sempre de encenações muito próprias e facilmente reconhecíveis.

Martin então tem espaço para crescer, desenvolver-se, e quase erradicar sua identidade inicial ao fim do filme, de forma bastante complexa. É um personagem que vai notadamente transformando sua essência, diante de desilusões e confrontos externos, mas principalmente internos. A colisão entre sua realidade, marcada pela privação de certos prazeres e experiências, com a vida de sua amada, que sempre olha para o mundo de cima, sentada sobre seus privilégios de uma elite que é aparentemente culta, mas que não reconhece a necessidade da arte em não ser sempre bela, é talvez seu maior trauma. Ele acredita que Elena é a mulher de sua vida, mas a impassibilidade da estrutura social só alimenta a sensação de que a relação está determinada ao fracasso. E é curioso que, todavia, nem ele mesmo se compreenda completamente diante dos desatinos de um mundo político, em que ele até pode reconhecer certos problemas, mas tenha dificuldades para encontrar as inconsistências em seu discurso. Não ser liberal, mas evitar o rótulo de socialista para, enfim, se olhar como um individualista é no mínimo indicativo de sua espinhosa identidade autorreconhecida.

A vida de Martin Eden é a vida da crise existencial perpétua, porque mesmo quando ela alcança o reconhecimento de suas obras, mesmo quando é reconhecido, ainda há lacunas a serem preenchidas, há respostas a serem encontradas, e principalmente um motivo de vida para ser definido. E quando nem mesmo o filme pode dar ao personagem todas as respostas, esse pobre texto não tem a pretensão de limitar a sua experiência fílmica, só expandi-la.

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João Neto
Cineratus

Formado em jornalismo, amante de cinema, mestrando em Comunicação Social.