O Gato Fritz (1972)

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João Neto
Cineratus
3 min readFeb 5, 2021

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A obra de Robert Crumb é recheada de uma literatura bastante carregada de um sarcasmo ácido que crítica e ao mesmo tempo ofende setores da sociedade. Quando isso é transposto para uma animação na década de 1970, o resultado é um filme que replica essa essência do trabalho de Crumb, com os mesmo acertos e os mesmos erros, mas sem fazer concessões, contraditório na medida certa.

Fritz é um gato universitário e bastante hipócrita. Acompanhamos sua jornada através de um retrato satírico dos anos 1960 em um mundo animado e bastante caótico.

Todos os esforços do filme estão voltados para estabelecê-lo como uma peça da contracultura. Ele se apoia em elementos subversivos e ofensivos, faz escárnio de conceitos, ideologias e instituições, tripudia sobre a figura de autoridade, como um meio de criar uma unidade fílmica caótica. Isso também está presente dentro da própria narrativa que só acompanha os desdobramentos da jornada de Fritz, que divaga sem muita consistência ou propósito. É aleatoriamente tumultuoso, fazendo de todas as suas críticas e ironias uma constante provocação.

Assim como no material original de Robert Crumb, Bakshi usa de estereótipos cultural e historicamente problemáticos, como a figura do corvo para representar os negros, mas também propõe com essa apropriação um discurso ácido que olha pra a própria raiz da formação desses estereótipos. Mesmo que nem sempre ele consiga lidar direito com essas escolhas paradoxais, ou problemáticas dependendo do ponto de vista, é bastante inteligente criar esses atritos pela simples representação imagética que está sempre em colisão com o discurso. É insultar e refletir sobre ideias que já se assentaram diante da dinâmica social dando um novo significado para seu uso.

Mesmo sendo um filme de 1972, as discussões acerca de um pós-modernismo receoso, a palavra frouxo talvez até exprima melhor o sentimento, que caminha lado a lado com um liberalismo que tem como única função tornar os indivíduos “cool”, parecem bastante atuais. Na verdade, a crítica toda se divide entre essa ala jovem e “lacradora”, para usar um termo atual, e o conservadorismo reacionário amargurado com as mudanças dos seus tempos. O protagonista nem assume um lado facilmente identificável, na realidade a sua inconstância só o move numa única direção e com um único propósito: um prazer imediato e contestador, independentemente de quem possa afetar. Ele acaba sendo só um agente anárquico, mas não anarquista, e claramente também um produto de seu tempo.

Essa hipocrisia que está presente nas ações e discursos de Fritz não é uma exclusividade, na verdade aquele mundo é povoado por personagens igualmente controversos e que estão agindo quase sempre motivados por um certo egocentrismo que fica explícito ao longo do filme. São seres tão desprezíveis quanto o possível e de fácil identificação por suas inconsistências. É dessas construções incoerentes que a encenação faz do filme um espelho para o público, que mesmo que não gostemos de admitir, é tão problemático quanto, talvez num grau de intensidade menor.

E das inexatidões do mundo e dos personagens, a sua forma, desenhos de animais antropomorfizados, e seu conteúdo, sexo e violência explicita, dão base para que se encontre esse equilíbrio bizarro e incongruente. É chocante pelos diálogos e ações em personagens tão carismáticos e historicamente associado a produções infantis como clássicos Disney ou até mesmo os menos comportados Looney Toones.

O Gato Fritz se mantém atual, mesmo que ele queira apenas remeter suas críticas e gozações a um período específico. É uma amostra de que as coisas não mudaram tanto assim, talvez só não tenhamos tantas produções dispostas a serem problemáticas e lidarem com os assuntos do momento de forma mordaz.

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João Neto
Cineratus

Formado em jornalismo, amante de cinema, mestrando em Comunicação Social.