O Oficial e o Espião (2019)

O escuso e o desprezível das instituições

João Neto
Cineratus
3 min readJan 28, 2021

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Polanski tem em seu cinema uma predisposição para retratar e aprofundar um sentimento de claustrofobia angustiante que leva seus personagens a um estado de quase loucura. Disso surge então uma narrativa que preza por elevar cada ato a altos níveis de inquietação e pânico, seja pelas situações proporcionadas pela realidade que os cerca, seja por conta das pessoas que, normalmente, os sabotam psicologicamente ou até mesmo fisicamente. Em O Oficial e o Espião isso também acontece, mas dessa vez completamente submisso a relação entre as instituições e o indivíduo comum, numa empreitada em que parece justificável sacrificar o sujeito pelo bem da manutenção de uma peça do Estado.
Ambientado no final do século XIX, o capitão Alfred Dreyfus, um dos poucos judeus no exército francês, é alvo de uma conspiração que o acusa de traição. Sentenciado à prisão perpétua e exílio, seu destino depende completamente do investigador Picquart que, desconfiado com os desdobramentos do caso, inicia sua apuração dos fatos.
A primeira cena revela justamente a intenção na forma utilizada para retratar a disputa de narrativa entre uns poucos sujeitos e o Estado, representado aqui pelas forças armadas. Enquanto Dreyfus é destituído de sua patente em praça pública, sobre gritos seus de protestos como forma de se defender diante da injustiça, ao fundo, prédios do exército que são visivelmente criados de forma digital denunciando a artificialidade da instituição, enquanto o homem de carne e osso está a frente na tela. Ao longo de todo filme é possível notar essas dissimulações ao fundo, contrastando com a materialidade das vidas, tanto de Dreyfus quanto do próprio Picquart que inicia uma verdadeira batalha contra um gigante.

Polanski tem cuidado para não tornar seu filme um objeto panfletário em causa própria diante de sua vida particular problemática, para dizer o mínimo. Dreyfus não se torna seu avatar, uma representação simbólica de si, mas um retrato histórico instigante. Picquart, mesmo numa posição e herói, ainda possui certos elementos que o humanizam, como o seu caso extraconjugal que mantém com a esposa de um amigo, e até mesmo sua reprodutibilidade das normas do exército na última cena.
A claustrofobia nesse trabalho está menos na distorção da realidade e da mentalidade e mais na pressão sofrida pelos protagonistas que parecem cada vez menores e incapacitados diante da gigantesca instituição. A investigação que esbarra sempre no posicionamento conveniente de que é melhor jogar um judeu aos lobos, como bode expiatório para encobrir as próprias falhas, parece impossível de alcançar qualquer sucesso. Mesmo diante do apoio de grandes figuras da época como Émile Zola, o poder da empreitada é anulado quando colocado perante os conchavos de defesa das rígidas estruturas. A sensação é de que se trata de um beco sem saída e de que, a cada novo avanço, essas mesmas estruturas pesam e se estreitam em volta deles, como num compactador que vai aniquilá-los em breve.
A progressão da narrativa, que funciona como meio de acompanhar o avanço das investigações e seu final agridoce, é realizada de maneira que torne possível temer pelas sanções de suas investidas, ao mesmo tempo que se anseia pelo desfecho e justiça no caso em questão. Polanski dosa isso com tanto refinamento que é possível ficar entre a expectativa receosa e o entusiasmo audacioso de uma investigação tão intrincada quanto necessária.

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João Neto
Cineratus

Formado em jornalismo, amante de cinema, mestrando em Comunicação Social.