Sem Remorso (2021)

Uma história sobre uma peça de xadrez

João Neto
Cineratus
3 min readMay 3, 2021

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É interessante notar como a obra literária de Tom Clancy acaba rendendo boas histórias, seus thrillers de espionagem possuem um vigor notável que quase sempre acaba sendo traduzido de uma forma satisfatória para as telas. Em Sem Remorso todos os elementos que consagraram as adaptações anteriores de suas histórias estão presentes, mas talvez falte sensibilidade para lidar com os elementos que funcionam como chamariz, a ação e a atmosfera de urgência. O arco dramático do protagonista, simbólico pela relação de elemento descartável, é bem resolvido, mas desaba diante das escolhas questionáveis.
Na trama, John Kelly é um oficial de elite da Marinha que é emboscado, junto com seu esquadrão, por soldados russos. A sua esposa grávida acaba morta durante o ataque e ele passa a viver em prol de vingança. John conta com a ajuda de sua companheira da marinha e de um questionável agente da CIA, numa missão que acaba expondo involuntariamente uma conspiração secreta que ameaça envolver os EUA e a Rússia em uma grande guerra.
É curioso como a trama se encaminha para reforçar o discurso de insignificância dos indivíduos que constituem as forças armadas. As referências ao “peão que queria derrubar o rei” encontram coro na forma como a trama se estrutura, com pequenos momentos de virada que aprofundam o sentimento de acessório do governo. Quanto mais o personagem se aprofunda nas entranhas do jogo político em que foi envolvido, mais evidente se torna a relação de submissão ao qual foi subjugado e a inexistência dos ideias pelos quais acreditava lutar.

Ao estabelecer tão bem essa temática, que apesar de expositiva por diálogos um tanto óbvios que estão disposto com a única função de reforçar o que o enredo em si já entrega, Stefano Sollima acaba anulando a força de seu longa com uma abordagem limitada. As cenas de ação estão distribuídas ao longo do filme de maneira estéril, sem o peso necessário para criar a sensação de perda inevitável. Por mais que o personagem sofra as consequências de sua investida na estrada da vingança, nunca parece que ele de fato irá em algum momento desfalecer diante da superioridade da máquina estatal. A sua irrelevância não é colocada a prova diante do discurso. E se sua fragilidade de peão, peça de menor valor no jogo de xadrez, não se concretiza, logo a estrutura que mantinha em pé a abordagem não se sustenta.
Todo o conceito estabelecido e trabalhado evolui de forma orgânica, mas a estabilidade com que o personagem vai do ponto inicial ao final prejudica o envolvimento do público e seu próprio arco dramático. O suspense político minucioso com suas questões é derrubado por sua perspectiva improcedente de vulnerabilidade que nunca se coloca de maneira completa.
O peão, no fim das contas, não é tão peão assim. Talvez seja uma torre, um cavalo ou até mesmo um bispo.

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João Neto
Cineratus

Formado em jornalismo, amante de cinema, mestrando em Comunicação Social.