29º Cine Ceará — Pacarrete

Antonio Lima Júnior
rock.rec.br
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5 min readSep 19, 2019

Direção de Allan Deberton | 2019 | 97' | Drama | CE

Cartaz do filme Pacarrete, dirigido por Allan Deberton — Divulgação

A cerimônia de encerramento do 29º Cine Ceará, além de apresentar as premiações das mostras competitivas, contou com a exibição do filme Pacarrete, do cearense Allan Deberton, grande vencedor do Festival de Gramado deste ano, levando oito prêmios, entres eles o de melhor filme, melhor direção e melhor roteiro do festival. Entretanto, a exibição estava limitada somente aos convidados e credenciados, o que gerou uma insatisfação no público externo, que frequentou várias sessões durante a semana do evento e obviamente tinha interesse em assistir o filme representante do Ceará nos festivais de Gramado e Xangai.

Louvável foi a reação do diretor, durante a cerimônia, em lamentar o ocorrido, mostrando que as cadeiras superiores do Cineteatro São Luiz estavam vazias, o que não justificava a limitação da cerimônia. O cinema é do povo, como o céu é do condor, parafraseando Castro Alves. De nada adianta, em momentos de crise, o cinema se fechar entre seus pares, pois não terá o povo ao seu lado para defender o cinema nacional contra os ataques que tolhem aos poucos a produção cinematográfica ainda tão aquém do que pode ser o bom cinema brasileiro.

Trailer de Pacarrete, dirigido por Allan Deberton — Divulgação

Um filme sobre a unidade dos contrários

A primeira cena apresenta a personagem que dá nome ao filme, interpretada por Marcélia Cartaxo, varrendo a calçada de sua casa, enquanto as crianças passam aos gritos de “pega a doida”. Os primeiros instantes já trazem muitos dos elementos que vão dar o tom do filme: uma beleza envolvente e uma diversão tranquila que continua por todo o longa. Gravado em Russas, no interior do Ceará e cidade natal de Allan, Pacarrete é um filme genuinamente cearense, com um humor natural, não forçado, com diálogos e cenas que remetem à vida interiorana.

Nos deparamos com a brilhante interpretação de Marcélia Cartaxo, que dá espírito à figura de Pacarrete, inspirada em uma bailarina de Russas. A personagem significa o conflito entre o erudito e o popular, mas que finda num conflito que não se antagoniza, surge como uma amálgama para quem cata feijão e diz que em francês é mais bonito. O filme é a expressão da unidade dos contrários, como na dialética pré-socrática de Heráclito, onde existe a interdependência entre dois conceitos opostos, no caso a cultura erudita e a vida prosaica da bailarina cearense.

Fotograma de Pacarrete, dirigido por Allan Deberton — Divulgação

A trama envolve o sonho de Pacarrete, professora de dança aposentada da carreira após voltar da capital para cuidar de sua irmã doente, mas que quer se apresentar no aniversário da cidade. O sonho é tolhido pelas festas de forró, que dão mais público e palanque para a prefeitura. A presença da secretária de cultura dá um tom realista para o filme, que foi impedido recentemente de receber o Programa de Apoio Internacional da Ancine, referente aos filmes que concorrem em festivais internacionais.

Indignada, Pacarrete faz uma espécie de militância pela sua arte erudita, tensionando com os habitantes popularescos da cidade. Esse conflito entre o clássico e o popular se desenvolve em todo o filme, conduzido por uma trilha sonora ora erudita, ora popular. O conflito é também geracional, com uma personagem que ainda ouve suas músicas em disco de vinil e assiste ao balé clássico em VHS, se recusando a usar o DVD quando sua fita de vídeo falha.

Pacarrete traz as contradições de quem está entregue à arte clássica e não consegue conciliar com o popularesco, com o regional da sua cidade, carregada de personagens tão peculiares quanto ela, a exemplo do bêbado interpretado pelo gênio da música cearense Rodger Rogério, que agora envereda pela atuação em filmes, tão brilhante como esteve em Bacurau. Quem consegue um papel de mediação com a protagonista é Miguel, o comerciante que exerce essa função de diálogo, sendo prestativo e ouvinte das lamúrias da dançarina.

Fotografia de cena do filme Pacarrete, dirigido por Allan Deberton — Divulgação

O longa resgata muito das teses de Walter Benjamin sobre o conceito de história, em especial as referentes ao passado, como o perigo que ameaça a existência da tradição e os que a recebem como uma imagem irrecuperável diante dos que não se sentem representados por ela. A população da cidade não tem interesse no balé clássico de Pacarrete, preferindo as festas de forró. E por mais que a reação de Pacarrete traz alguns tons reacionários, negando qualquer diálogo com o novo e trazendo para a bailarina a consequência de um isolamento cada vez mais constante, é novamente a unidade dos contrários que justifica a dureza da personagem, uma dureza que é também uma espécie de auto-defesa e que concilia com o modo de viver do interior.

Allan exerce um trabalho primoroso de roteiro e de direção, ajustando as sequências, como a aparição do cachorro He-Man, mudando o elenco da trama no momento em que o humor dá lugar ao drama da bailarina rejeitada, enquanto a festa corre lá fora. O diretor sabe aplicar o som e a trilha sonora nos momentos certos, deixando o drama pessoal da bailarina em conflito com a farra na rua. Assim, o desfecho é um encontro de Pacarrete consigo mesmo, mas também um encontro com o verdadeiro público, o que não está lá fora, mas sim em frente à tela, fechando a sua van premiere com uma câmera que atravessa o palco e chega aos nossos olhos de forma magistral.

Texto de Antonio Lima Júnior, revisado por Frederico Moschen Neto. O Cinestésico é uma publicação independente e colaborativa sobre audiovisual brasileiro e adjacências, mantida pela Sangue TV.

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