Espero tua (re)volta

Direção Eliza Capai | 2019 | Documentário | Brasil

vino
rock.rec.br
5 min readJul 26, 2019

--

Trailer oficial: Lucas “Koka” Penteado, Marcela Jesus e Nayara Souza contribuem com a narração e escrita do filme.

“O que se passa entre os corpos numa ocupação é mais interessante que a própria ocupação!”

-Comitê Invisível

Há um choque de narrativas e imaginários entre meios de comunicação, midiativismos e certos cinemas documentais. Por vezes disputam, dialogam, apropriam-se. Ao se aproximar dos corpos que ocupam e das vozes que protestam, Eliza Capai transita por esses registros, levando à tela grande (e depois a outras janelas) uma poética de representatividades, uma poética de narrativas.

Espero tua (re)volta tem coprodução Globo Filmes e Globo News, conta com materiais de arquivo da emissora, filmagens cedidas por coletivos como Mídia Ninja, Jornalistas Livres, e ainda registros participativos, feitos no calor do momento. Cada registro carrega consigo uma chave para compreender as ocupações, e por si só um alinhamento ideológico. Se a representatividade é uma questão central para o movimento estudantil recente, o filme traz essa discussão ao próprio processo de construção do longa.

Essas notícias midiáticas e conteúdos midiativistas têm urgência, cada qual por sua razão. Já o cinema tende a levar mais tempo para chegar ao seu público. O filme de Eliza nos dá, de maneira mais abrangente, a compreensão de toda uma geração de novas militâncias e ativismos. Vai além do recorte das ocupações ou do movimento estudantil, e a partir disso nos convida a pensar o contexto político do Brasil recente, ainda inconcluso.

Ao reverter a linearidade de uma cena, o documentário provoca as dúvidas das estudantes que protagonizam a narração: onde tudo isso nos levou? Quando é que compreendemos a complexidade, contradições e essa crise de representatividade das Jornadas de Junho? E a eleição de um governo de extrema-direita? Podemos acompanhar o processo de consciência dessas personagens à medida que os tempos variam. Mudam os escritos nos cartazes. Mudam as palavras de ordem. Há uma certa estética das revoltas que, no filme de Eliza, parece buscar pertencimento para este público.

Maio de 2016. Com o escândalo das merendas, estudantes voltam a ocupar, dessa vez, a Assembleia Legislativa de São Paulo. É cobrindo este episódio (numa série para o Canal Futura) que Eliza Capai e a produtora Mariana Genescá tomam a iniciativa do que se tornaria o longa. São conscientes dessa diferença de pontos de vista, distâncias e linguagens das redações jornalísticas (para não dizer da figura onipresente e do lugar-algum do apresentador de telejornal) para os protestos das ruas. Conscientes do próprio fazer, ora um exercício de alteridade, ora um exercício de participação. Conscientes do degrau entre quem filma e quem é filmado, quem protagoniza e quem registra. Eliza se contamina com aquilo (mesmo trabalhando para a Fundação Roberto Marinho, aliás), e filma em meio ao rumo dos acontecimentos.

Estudantes em marcha. Foto: Eliza Capai

2015. Foram fechadas cerca de nove mil salas de aula em São Paulo. Risco de remanejamento de mais 300 mil alunos e 74 mil docentes. Diante da Reforma de Ensino Médio proposta, já em 2016, somente no estado do Paraná foram mais de 850 escolas ocupadas. Lançado no Brasil neste junho de 2019, Espero tua (re)volta dialoga ainda com outra onda de protestos que, com novos cortes da educação, levam milhares de estudantes às ruas. E faz parte de uma série de produções sobre o recente movimento estudantil: Primavera, Primavera Estudantil, Primavera Secundarista, República do Caos, Escolas em Luta, Ocupar e Resistir…

A diretora Eliza se diferencia aproximando-se dos corpos que filmam, dos relatos de quem está vivendo dentro de uma ocupação. A filmagem testemunha a violência policial, levando essas experiências à experiência do cinema, à experiência da grande tela. Narrado e escrito com a colaboração de Lucas “Koka” Penteado, Marcela Jesus e Nayara Souza, as palavras e personagens carregam pautas e bandeiras como o feminismo, a luta contra o racismo, os movimentos LGBTI+. Ainda que sob críticas na esfera da representatividade, o filme busca esse pertencimento tanto de autonomistas, que protagonizaram as ocupações, quanto de entidades estudantis, mais próximas à lógica da macropolítica das instituições. E, nesse processo de consciência, vemos personagens amadurecendo, protagonizando movimentos e as próprias vidas.

As idas e vindas e as transformações de consciência e modos de ser na micropolítica, esfera em que o filme se aprofunda, são mais interessantes que resultados, conquistas ou derrotas da macropolítica. E, por estar próximo dos corpos, é um filme muito violento, na medida em que estes corpos são vítimas da violência. Espero tua (re)volta se constitui de fluidos corporais: lágrimas, suor, sangue.

Marcela Jesus encarna, nas próprias transformações, esse processo de consciência da juventude ao longo das ocupações e protestos. Foto: Bruno Miranda

As cenas legitimam e explicam as motivações da desobediência e a revolta na luta por direitos. Em boa parte da grande mídia ou das narrativas de movimentos reacionários, os movimentos sociais e o papel de ativistas são criminalizados sistematicamente. Já quando o documentário testemunha a repressão do Estado, o uso excessivo de força e o despreparo de policiais contra jovens (por vezes menores de idade), as filmagens compreendem uma ética das ocupações, a seriedade com que jovens buscam a garantia de direitos, e por outro lado denuncia a violência policial. Do mesmo modo, é nessa micropolítica que vemos ora o medo generalizado, os ataques de pânico, a vítima semi-acordada à espera da ambulância, ora a coragem e a rede de afetos que motivam os protestos e ocupações, na criação do jogral, na invenção de novas formas de ir às ruas.

Ao longo dessa dialética, indo e vindo no passado recente dos protestos, o filme parece se perder, assim como os protagonistas do movimento. Torna-se visível a formação política, nos lava a alma, mostra versões plurais da história. Eliza compreende: não é o momento de falar apenas para os pares, mas buscar formas de dialogar, questionar, incentivar a reflexão e o debate, que em tempos de pós-verdade e fake news, parece tão esvaziado. O filme tem essa solidez, enquanto obra.

Filme visto no Olhar de Cinema. A publicação colaborativa rock.rec.br é uma iniciativa da Sangue TV. Conheça o nosso expediente e colabore.

--

--