A Cidade dos Piratas
Direção de Otto Guerra | 2019 | Animação | Porto Alegre/RS
Tal como o poder de síntese e de humor das charges, A Cidade dos Piratas vibra nesta dupla radicalidade. Como os assuntos espinhosos dos quais todo mundo fala, mas só as tirinhas conseguem resumir. Poucas cenas do cinema brasileiro têm essa equivalência da introdução: colonizadores decepam um bicho preguiça, Raul Seixas berra “a solução é alugar o Brasil”. O longa de Otto Guerra [confira a entrevista] não pretende dar conta da atual conjuntura, tampouco da história do Brasil. Nem da biografia da Laerte Coutinho e seus antigos Piratas do Tietê, muito menos a do próprio diretor. Mesmo assim, passa por tudo isso e vai além. Radicalmente à frente das situações que enfrenta e que enfrentamos. No Brasil colonial, no regime totalitário ou no atual impasse sociopolítico.
Após a introdução, ficamos com este princípio anárquico — do humor e da síntese — que dá o tom e nos leva aos núcleos seguintes. Se “vanguarda” é um termo bélico, aqui o adjetivo é bem empregado, portanto. A obra de Otto, que teve a primeira animação indicada para maiores de 18 anos (pelo seu Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock’n’Roll, de 2006), dialoga com o cinema marginal e com os movimentos de contracultura que ele revive e ressignifica no contexto contemporâneo. Depois de se basear na obra de Angeli e de Adão, Otto volta-se à Laerte. Na Cidade dos Piratas, pode haver governantes tiranos, retrocessos na micro ou na macropolítica, mas a crítica bem humorada deles se alimenta e prevalece. Não foi sempre esse o lugar da arte, afinal?
Praticamente tudo funciona neste princípio anárquico de Otto: biografia e autobiografia, metalinguagem, momentos épicos e sátira, memória, piratas, Fernando Pessoa, colagem de materiais de arquivos, a estética de quadrinhos, infinitas referências, a própria realização do filme virando dramaturgia, as pixações nos muros… É como se, por alguns momentos, fosse possível vencer o absurdo contemporâneo enquanto dura o filme.
E se este lugar livre do humor tem tanta potência, o longa nos leva a refletir sobre os limites e problemáticas de se fazer arte no Brasil atual. Uma espécie de autocrítica que não poupa ninguém — realizadores, protagonista, público, crítica — aqui estamos. Um filme que demorou décadas da primeira versão do roteiro à tela grande. De repente, os tais Piratas do Tietê que Laerte desenhava há anos soam machistas, misóginos, transfóbicos, a ponto de não fazerem mais sentido, nem para ela, nem para nós. No processo de rever o próprio trabalho. Mudou Laerte, teria mudado o Brasil? A Cidade dos Piratas retrata essa memória, por um lado, e essas comparações entre ontem e hoje. Neste lugar das minorias, da contracultura, é que se coloca Otto Guerra. Se há avanços na trajetória pessoal, há denúncias urgentes a serem feitas com humor.
Texto de Vinícios "vino” Carvalho e revisão por Frederico Moschen Neto. A publicação colaborativa rock.rec.br é uma iniciativa da Sangue TV. Conheça o nosso expediente e colabore.