A Candidata Perfeita (2019), de Haifaa Al-Mansour, e as mulheres na política

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readSep 30, 2022

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Costumamos pensar na Arábia Saudita como um inferno para as mulheres. Mas algumas coisas são bem parecidas na Arábia Saudita e aqui no Brasil. Podemos não ser na maioria muçulmanas, não andar com nossas cabeças cobertas ou não precisar de autorização de um homem para viajar, mas na política, por exemplo, as candidatas sauditas e as brasileiras enfrentam desafios bem parecidos, como pode ser visto no filme “A Candidata Perfeita”.

A médica Maryam (Mila Alzahrani) tem um contratempo quando está viajando para um congresso em Dubai: sua permissão para viajar venceu. Ao tentar falar com um parente influente para solucionar a questão, ela precisa assinar um termo se candidatando ao cargo de Secretária Municipal — sim, porque o parente influente só está atendendo os candidatos naquele dia. Maryam não consegue seu visto, mas fica decidida a concorrer à eleição, tendo como principal promessa de campanha o asfaltamento da rua que leva até a clínica onde ela trabalha.

A campanha de Maryam se desenrola enquanto o pai dela está em turnê com seu grupo musical. Ficam em casa as três irmãs, Maryam, Selma e Sara, sendo que Sara, a mais nova, não gosta nada da ideia de Maryam concorrer na eleição. A mãe das três, já falecida, era cantora em casamentos e, ao que Sara dá a entender, era ridicularizada com frequência, fazendo as filhas sofrerem. Quando o vídeo de campanha de Maryam viraliza, Sara lê comentários sarcásticos de valentões da internet, algo que é quase cotidiano na vida das mulheres que entram para a política.

No Brasil, as mulheres conquistaram o direito ao voto em 1932, antes da maioria dos países da América Latina. Curiosamente, antes mesmo disso uma mulher já havia sido eleita em nosso país: Alzira Soriano foi eleita prefeita do município de Lages em 1928, graças a um decreto do estado do Rio Grande do Norte que permitia às mulheres votarem e serem votadas a partir de 1927. Na Arábia Saudita, as mulheres puderam votar pela primeira vez apenas em 2011, e ainda com várias restrições.

Apesar de nossa história como pioneiros do sufrágio feminino na América Latina, nós brasileiras ainda vemos muita desigualdade de gênero na política, e uma das piores facetas desta desigualdade é a violência política de gênero. Há mais mulheres que nunca concorrendo nas eleições, mas para muitos isso significa apenas que há mais alvos. Os ataques não poupam nem políticas abertamente conservadoras e, ocorrendo em sua maioria nas redes sociais, reforçam ideias antifeministas ao apontar o suposto “vitimismo” das candidatas e chamá-las de “vergonha”, “incompententes” ou “loucas”.

Maryam encontra na internet um passo a passo de campanha eleitoral, e um dos passos, ela compartilha com uma colega, é “vencer a oposição”, ao que a colega responde: “basicamente, todos os homens da cidade?”. Numa eleição, não são necessariamente os eleitores homens que fazem oposição às candidatas mulheres. Muitas mulheres, seguindo a opinião de seu macho (ato que chamo carinhosamente de “pensar com a b***ta”) ou pensando que não precisam de feminismo e sororidade, votam em candidatos que são contra os direitos das mulheres- e isso inclui candidatas antidireitos, que não são poucas. Isso mostra a necessidade de não apenas eleger mulheres, mas eleger mulheres feministas — e adquirir um pouco mais de consciência de classe e empatia também não faz mal algum.

Em seus filmes anteriores, a diretora Haifaa Al-Mansour tratou muito de liberdade. Em “A Candidata Perfeita”, Maryam se liberta ao longo de sua campanha ao se expor, seja retirando seu niqab para dar uma entrevista na televisão ou aceitando seu dom como cantora. É curioso estarmos discutindo o filme não apenas em semana de eleição, mas num momento em que eclodem protestos reprimidos violentamente pela polícia no Irã após a morte de uma jovem cujo “crime” foi não cobrir os cabelos e o rosto da maneira que as forças armadas queriam. No Irã, vizinho da Arábia Saudita, o sufrágio feminino veio em 1963, mas os direitos das mulheres estão longe de ser completamente respeitados, e é por isso e pela violência contra elas que são as mulheres as organizadoras da onda de protestos atual.

Para Maryam, ser candidata transformou sua vida e sua maneira de ver as coisas. Para as milhares de mulheres na política no Brasil, uma campanha também pode mudar tudo. Muitas escolhem não concorrer novamente devido aos ataques, enquanto outras, uma vez eleitas, precisam desenvolver estratégias para lidar com a violência política de gênero durante seus mandatos, pois a violência não cessa com o barulhinho de “confirma” das urnas. Isso significa que candidatas e políticas eleitas precisam gastar sua energia com um problema que não atinge os políticos do sexo masculino — um problema que em muitas ocasiões é inclusive incentivado por eles, que atiçam seus eleitores contra suas adversárias. Podemos não viver na Arábia Saudita, mas vemos nossa realidade em parte espelhada em Maryam, esta candidata, para nós, mais-que-perfeita.

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