A Compadecida (1969) e a Secretária da Cultura que não se compadeceu com sua classe

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
9 min readMay 27, 2020

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De namoradinha do Brasil a noiva cadáver do fascismo: só sei que foi assim.

No começo de 2020, a minissérie “O Auto da Compadecida” foi exibida na televisão, 20 anos após sua estreia. A exibição foi um sucesso, ressoando nas redes sociais, em especial no Twitter, onde foram exaltadas as qualidades da produção, uma dos mais populares do audiovisual brasileiro. O que pouca gente sabe é que esta não foi a primeira adaptação da obra de Ariano Suassuna para as telas. Chicó e João Grilo já deram o ar da graça no cinema em outras ocasiões, como em “Os Trapalhões no Auto da Compadecida” (1987) e em “A Compadecida” (1969), que traz uma figura ainda em evidência na política brasileira num papel que hoje soa bem dissonante de tudo o que ela faz.

Mesmo a bênção do Padre João (Felipe Carone) não impediu que o cachorro de estimação da mulher do padeiro (Neide Monteiro) partisse desta para uma melhor. Ela insiste que o cão seja enterrado de acordo com os ritos da Igreja, o que o padre aceita apenas porque — veja bem — ele está no testamento do cachorro.

Capa do DVD de “A Compadecida” (Imagem: Amazon)

Observando e mediando o enterro do cachorro, com um olho no testamento, estão os malandros Chicó (Antonio Fagundes) e João Grilo (Armando Bógus). Após o enterro chega um bando de cangaceiros à cidade e o conflito entre eles e os locais faz muitas vítimas, incluindo o padeiro e a mulher, o padre, o sacristão, o capitão dos cangaceiros e João Grilo. As vítimas são então julgadas por Jesus (Zózimo Bulbul), que aponta as hipocrisias deles em vida. Finalmente, chega Nossa Senhora (Regina Duarte) para intervir em alguns casos.

“A Compadecida” estava marcado para estrear em julho de 1969, mas um mês antes o Departamento de Censura Federal vetou a exibição do filme em todo o território nacional, acusando-o de “atentar contra princípios religiosos”. Em 30 de julho, após sofrer cortes, o filme finalmente foi liberado para exibição. Sobre a situação, o ator Rubens Teixeira, intérprete do Major, declarou, para o Diário de Pernambuco:

(Imagem: Diário de Pernambuco, junho de 1969)

“A Compadecida” reflete bem as dificuldades enfrentadas pelo cinema brasileiro do período. A maioria das cenas foram gravadas ao ar livre, em Brejo da Madre de Deus, em Pernambuco — isso inclui as cenas do julgamento. A captação de som não é das melhores, e isso fica patente quando se vê uma cópia sem restauração. Os figurinos, entretanto, são excelentes — não à toa, foram idealizados pelo brilhante artista plástico Francisco Brennand.

Regininha pouco faz no filme… e, 50 anos depois, continuaria fazendo bem pouco pela cultura, provando que quem nasceu para ser Regina Duarte jamais será Fernanda Montenegro.

Desnudando a namoradinha do Brasil

Em 1969 o Brasil vivia uma ditadura, e a “namoradinha” do país foi escolhida para viver Nossa Senhora. Dez anos depois, para se desvencilhar desta imagem virginal, ela aceitou, depois de muita insistência, o papel de protagonista da revolucionária série “Malu Mulher”. Ela interpretava uma mulher moderna, socióloga — inspirada na profissão de Ruth Cardoso, então amiga de Regina e que, se estivesse viva, hoje estaria com vergonha da neofascista. Interpretando Malu, Regina recebeu muitos elogios e foi inclusive recebida com festa em Cuba, onde tirou a foto acima, em 1984. O diretor de “Malu Mulher” e marido de Regina entre 1978 e 1979, Daniel Filho, recebeu com estranheza a atitude de vira-casaca política da ex-companheira. Durante a visita a Cuba, Regina teve seus passos monitorados pelo Serviço Nacional de Inteligência e declarou que Fidel era “um dos maiores estadistas do mundo”.

Hoje, Regina está ainda em evidência por ter se associado a um governo fascista e ter sido uma secretária de cultura nada atuante em meio a uma imensa crise. Teria sido Regina escolhida como “secretária decorativa”, uma Rainha da Suástica, mero bode expiatório em meio a uma guerra ideológica da qual, não importam os vencedores, a cultura brasileira inevitavelmente sairá prejudicada? A verdade é que ela foi nomeada para substituir um secretário que cometeu o pecado capital de ser nazista em público — no privado, tá OK — e, se aceitou o cargo para voltar a ficar em evidência, confirma o que disse certa vez Nathalí Macedo: “que a carência disfarçada de ideologia não é só patética: ela pode ser também nociva e doentia”.

(Imagem: Instagram)

À primeira vista, pode parecer estranha a aproximação de Regina com o bolsonarismo. Na Alemanha nazista, as mulheres da cultura cooptadas pelo regime eram ou jovens e bonitas — como a atriz Sybille Schmitz, cuja história é contada, com licença poética, no filme “O Desespero de Veronika Voss” — ou maduras e inteligentes — como a roteirista Thea von Harbou. Mas, com uma nova análise, a escolha de Regina mostra-se perfeita: não eram os tempos da ditadura os “bons e velhos tempos”? E não era nessa época que Regina alcançava seu maior sucesso, sendo chamada de “namoradinha do Brasil”?

Talvez, aqui, Freud explique a tal transformação. Ao declarar apoio a Bolsonaro, Regina disse que ele era “um cara doce” dos anos 50, como o pai dela. O pai de Regina também foi membro do exército, também não foi além da baixa patente de tenente, também apoiava a ditadura militar. E deixou para a filhota, desde sua morte em 1981, uma pensão que em 2020 beira os sete mil reais mensais. Além de atualizar as definições de “mamar nas tetas do governo”, essa história nos sugere um complexo de Édipo.

Mas ainda há mais do que isso: Regina se mostra reacionária desde 2002, quando afirmou “eu tenho medo” frente a uma vitória da esquerda na eleição presidencial daquele ano. Ela poderia perfeitamente ser uma das personagens do filme “Domingo” (2018), que trata de um almoço de uma família e seus empregados, no dia da posse de Lula, em 2003. Podemos ter certeza de que Regina, alguns personagens mais conservadores do filme e muitos milhões de brasileiros começaram naquele dia a se alimentar de ódio para finalmente gastá-lo apertando 17 nas urnas em 2018. Regina e os personagens tinham medo da ascensão e da suposta revolta dos que sempre foram humilhados e diminuídos. Ascendemos, mas não nos revoltamos — teria sido este nosso erro? — e, como sempre, a ascensão de alguns gera inveja nos outros. É medo que vira inveja que vira ódio.

O mundo dá voltas em 80 dias: coronavírus, a cultura, a queda

Depois de mais de 50 anos na Globo, Regina preferiu ser nomeada Secretária Especial da Cultura, dentro do Ministério do Turismo. Passou a entrar em reuniões com o presidente não pela porta da frente, mas pela garagem, como empregada de segundo escalão — sinal de apreço não correspondido pela secretária que tem uma foto do chefe com o agora ex-amigo Moro na sala de casa, de acordo com declaração numa entrevista absurda que voltará a ser mencionada logo mais. Que empregado tem a foto do patrão em casa? Isso não soa meio doentio ou fanático? Continuemos.

Regina tomou posse numa cerimônia recheada de roupas de poá e metáforas circenses. E logo a mestre de cerimônia fez uma classe inteira de trabalhadores de palhaços e teve seu momento de viúva Porcina, “a que foi sem nunca ter sido”.

(Imagem: site Reconta Aí)

O coronavírus chegou oficialmente no país em meados de março e foi decretada a quarentena. Muitos profissionais e atividades estão sofrendo com o isolamento social, e a cultura certamente foi uma das mais afetadas e menos remediadas. Ora, como sobrevive um cinema sem espectadores? Uma livraria sem clientes, sem eventos de tardes e noites de autógrafos? E o teatro, a mais gregária das artes, como fica? No limbo, se dependesse da secretária.

Ao contrário do que o senso comum nos diz, não só de artistas é composta a área da cultura. Para cada pessoa que sobe num palco ou é captada por uma câmera, há pelo menos dez nos bastidores que fazem a arte acontecer, mas permanecem anônimas. São técnicos, figurinistas, maquiadores, costureiras, motoristas, iluminadores, compositores, roteiristas, e muitos, muitos outros. São membros não de uma classe artística, termo restritivo e com caráter negativo nos tempos atuais, mas sim de uma classe de trabalhadores da cultura. Os que dizem que “todo artista é vagabundo” não veem o esforço tremendo de todos os trabalhadores da cultura que ficam nos bastidores e que também estão parados atualmente.

(Imagem retirada de vídeo da campanha #CadêRegina)

Como escreveu Leo Aversa, com o coronavírus, “Teatros, casas de show, galerias, bibliotecas, ateliês, museus, cinemas, livrarias e circos foram os primeiros a fechar. Quando o vírus for embora e o país voltar a andar, serão eles os últimos a abrir.”

Por isso, e com razão, os trabalhadores da cultura pressionaram a secretária pela liberação emergencial de auxílio financeiro para o setor através da aprovação de propostas e da liberação de recursos do Fundo Nacional de Cultura. Regina não moveu um músculo nesse sentido, mas no sentido contrário. Os trabalhadores da cultura — ou do entretenimento, já que o termo “cultura” assusta tanto — não são palhaços. Ou antes fossem: teriam mais atenção da Secretária.

(Imagem via Twitter)

Ainda sem nenhuma resposta à classe artística, Regina mostrou sua vocação para boba alegre em entrevista desastrosa para a CNN, na qual disse que sempre houve censura no mundo e menosprezou artistas vítimas do coronavírus, como Aldir Blanc, dizendo que a emissora estava “desenterrando mortos” e ela preferia esquecer o passado e manter uma atitude positiva. Alerta de spoiler: não dá para esquecer o passado para se fazer arte.

Não se poderia esperar muito de um governo que pratica abertamente a necropolítica — a política da morte — e cujo presidente se recusa a assinar o diploma do Prêmio Camões de Chico Buarque, porque o autor e músico lhe faz críticas, mas emite nota de pesar porque um funkeiro reacionário cometeu suicídio após agredir a amante grávida. A cultura nunca foi prioridade, nem sequer algo que mereça consideração para este governo.

Na CNN, Regina lava as mãos numa bacia de sangue ao minimizar mortes e censura da ditadura (Imagem: Instagram)

Finalmente, menos de 80 dias depois de assumir a secretaria, Regina foi enviada para a Cinemateca Brasileira, onde substitui Olga Futemma, mestre em cinema, há 36 anos no cargo, responsável por organizar os arquivos de Glauber Rocha. Na ocasião, Regina declarou que havia recebido um presente, “um convite para fazer Cinemateca”, provando que coesão e coerência não têm vez e que a Cinemateca, que deveria ser o órgão de preservação do audiovisual brasileiro, virou depósito de fascista cuja presença em Brasília é inconveniente. Como sintetizou um amigo meu: “partiu da indiferença para a insignificância, com passagem pelo ridículo”.

O fundo do poço de uma carreira artística é virar figurinha de WhatsApp (Imagem: divulgação)

Quando este governo passar — e ele há de passar — talvez Regina acabe como Sybille Schmitz e Thea von Harbou, onde merece estar: no ostracismo.

Sobre a classe artística, até o fechamento desta matéria, muitas águas haviam rolado. O presidente, surpreendendo zero pessoas, vetou a parte do projeto de lei 873/2020 que garantia o pagamento do auxílio emergencial a profissionais da cultura. E, na véspera da publicação deste texto, um projeto totalmente focado nos trabalhadores da cultura foi aprovado na câmara. O projeto recebeu a alcunha de PL Aldir Blanc — exatamente uma daquelas vítimas do coronavírus que Regina não quis homenagear para sua pasta não virar obituário — logo ela que, como toda pessoa que se associa ao fascismo, escreveu seu obituário em vida: está morta para a verdadeira classe artística.

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