A Esposa (2017) e a mulher que fazia o homem

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readJan 10, 2019

--

(Imagem: reprodução)

ESTA CRÍTICA CONTÉM SPOILERS

O que Deborah Kerr, Thelma Ritter e Glenn Close têm em comum? Primeiro, todas são — ou foram — atrizes brilhantes. Segundo, nenhuma delas ganhou o Oscar. Terceiro, todas têm o mesmo número de indicações infrutíferas ao prêmio da Academia: seis. Em 2019, Glenn Close pode vir a derrubar este jejum com “A Esposa”, um filme que estreou em seu primeiro festival em 2017, foi segurado pela distribuidora e apenas no final de 2018 começou a chegar aos circuitos comerciais.

Na primeira sequência de “A Esposa”, a personagem de Glenn acorda, acende a luz do seu lado da cama e percebe que o marido está sentado do outro lado, comendo, nervoso. Logo ele a convence a transar, dizendo que ela “só precisa ficar ali, não precisa fazer nada”. Ela concede. Porque ela vem concedendo às vontades dele desde que se casaram. Afinal, ela é A Esposa, e é isso que esposas fazem: se curvam frente às vontades de seus maridos — ou pelo menos era o que elas faziam até pouco tempo atrás.

O ano é 1992 e Joe Castleman (Jonathan Pryce) foi o escolhido do ano para receber o Nobel de Literatura. Joe vai a Estocolmo levando a tiracolo a esposa, Joan (Glenn Close) e o filho, David (Max Irons), que também ensaia alguns passos na carreira de escritor. Enquanto Joe tem uma série de compromissos, uma mulher enviada pela equipe do Nobel fica encarregada de distrair Joan com compras e idas ao cabeleireiro.

Joan e Joe em Estocolmo (Imagem: reprodução)

Seguindo Joe está Nathaniel Bone (Christian Slater), que recebeu uma oferta para escrever um livro sobre Joe, mas o objeto de estudo não está disposto a colaborar com a pesquisa de campo. Mas Joan está disposta a conversar com Nathaniel, e quando eles fazem isso ele menciona os diversos casos extraconjugais de Joe, ao que Joan responde que não quer ser mostrada como coitadinha no livro, porque ela é bem mais interessante que isso.

A verdade é que Joan Archer, uma jovem de olhos azuis e com muita esperança em relação ao que o futuro lhe reservava, queria ser uma escritora em 1958, quando ela era aluna do já reconhecido professor Joseph Castleman. Um dia, ela teve seu sonho desencorajado pela brilhante porém fracassada escritora Elaine Mozell (Elizabeth McGovern), que vendeu poucas cópias de seus trabalhos. Elaine diz que o mundo não está preparado para uma boa prosa escrita por mulheres, e que mulheres escritoras nunca atrairão a atenção dos homens que fazem as resenhas e ditam o que está na moda na literatura.

A jovem Joan é interpretada por Annie Starke, filha de Glenn Close (Imagem: reprodução)

A outra verdade é que, apesar de reconhecido, o jovem Joseph Castleman era um escritor ruim, criador de diálogos inverossímeis e personagens sem vida. Quem dava vida aos seus escritos, através de edição, de sugestões certeiras e muito mais, era Joan, que acreditou em Elaine e ficou convencida de que nunca seria publicada, e se fosse, não seria lida, mesmo se fosse uma boa escritora. Sem Joan, Joe era medíocre. Com ela, se tornou brilhante.

É possível notar a simbiose até no nome dos dois: Joe e Joan. No ensaio, sem a esposa, Joe parece perdido. Você já deve ter conhecido algum casal assim — talvez até mesmo seus pais ou avós sejam assim — em que o homem se sente perdido sem a mulher. Isso não é fofinho, não é “relationship goals”: é uma relação em que quem perde é quase sempre a mulher.

Quem nunca ouviu que “por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher”? Ou que “a mulher faz o homem”? Quem já ouviu falar da primeira esposa de Albert Einstein, Mileva Marić, que era tão ou mais brilhante que ele, e que só agora está recebendo o devido reconhecimento? É sobre isso que “A Esposa” trata: das mulheres eclipsadas pelos homens de suas vidas, não porque eles eram melhores que elas, mas porque roubaram o trabalho delas e foram considerados geniais simplesmente porque eram homens. Assim, é quase um milagre que Marie Curie tenha tido o mesmo reconhecimento do marido Pierre — talvez um reconhecimento até maior — ainda em vida.

Aliás, vale lembrar que, mesmo não sendo um bom escritor, Joe dava aulas de escrita para uma sala cheia de mulheres, e frequentava as rodas da alta literatura. Ao mesmo tempo, para cada homem medíocre que aceita uma posição assim deve haver várias mulheres incríveis que não se consideram boas o suficiente para a mesma posição. Não digo que a personagem Joan sofria da Síndrome do Impostor, só digo que isso existe e precisa parar.

(Imagem: reprodução)

O discurso de Elaine Mozell doeu fundo em mim, enquanto mulher que escreve. O que mudou desde 1958? A leitura foi realmente democratizada? Mais mulheres estão sendo lidas e, em especial, publicadas? São ainda os homens, através de sites e blogs, que ditam o que está na moda na literatura? Será que um dia eu vou ter sucesso ou meu talento vai se espalhar por apenas algumas cópias compradas por obrigação por amigos e parentes? Não tenho respostas para estas perguntas — porque, como um bom filme, “A Esposa” cria mais questionamentos do que dá respostas — mas sei que não deixarei homem nenhum se apossar de meu trabalho, e com este artigo torno pública esta promessa.

“A Esposa” é um filme que demorou 14 anos para ser aceito para produção. É um filme escrito por uma mulher, baseado em um livro de uma mulher — detalhes que conferem seu caráter verdadeiro e trazem um debate necessário. A atuação de Glenn Close, entre explosões de raiva contida e momentos em que atua só com a respiração, é um show à parte. No cerne da questão do filme, fica o aviso: precisamos acabar com as Elaines Mozell, que dizem que as mulheres nunca conseguirão sucesso sozinhas, e não podemos mais deixar que homens medíocres levem o crédito de mulheres incríveis — nem que para isso seja necessária a mais feroz das rupturas.

--

--