A Filha do Pescador (2023) e o reencontro que trans-forma

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readJul 22, 2024

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Nos últimos anos, devido a mudanças culturais e novas conversas sobre amadurecimento, vêm pipocando no cinema narrativas sobre a ausência paterna. Muitas delas têm ainda um tempero: a temática LGBTQ+, a exemplo do recente filme nacional “A Filha do Palhaço”. Outro filme que reúne os dois temas, mas parece mais preocupado em construir uma trama que dialogue com o público hétero e cisgênero, é “A Filha do Pescador”, que acaba de chegar aos cinemas.

Estamos nos anos 1990, nos situa um calendário lunar que o pescador Samuel (Roamir Pineda) consulta, deitado numa rede. Numa noite, uma mulher usando saltos muito altos, pouco práticos para andar nas areias da praia, chega procurando por Samuel. É sua filha Priscila (Nathalia Rincón), buscando dinheiro para, segundo ela, pagar um empréstimo que fez para cobrir as despesas do enterro da mãe. Colérico, Samuel exige que “Samuelito” tire a maquiagem e no dia seguinte avisa: “se você se produzir, te tiro daqui com a ponta do facão”.

Obrigada a cortar os longos cabelos, Priscila fica trancada em casa quando seu pai vai pescar. Um dia entra no recinto Miguel (Jesús Romero), um jovem ajudante dos pescadores, e Priscila pede que ele lhe traga cigarros de uma cidade vizinha. Tem início uma espécie de amizade entre eles. Para Miguel, ela confidencia que nunca se deu bem com o pai.

Priscila mentiu sobre a razão de sua volta à comunidade de pescadores. Ela, hoje cheia de cicatrizes causadas por automutilação, está se escondendo. Ela se prostituía junto a outras pessoas trans e acabou matando um policial que pagou por seus serviços. De fugitiva ela passa a cuidadora quando Samuel machuca o pé mergulhando.

“A Filha do Pescador” me lembrou de outro filme LGBTQ+ com pano de fundo praiano: “Contracorriente” (2009), que conta a história de amor proibido entre Miguel e Santiago. Miguel (Cristian Mercado), que não usa a palavra difamatória “homossexual” e que garante que não é um deles por sua esposa estar grávida, só consegue andar de mãos dadas com o amado Santiago (Manolo Cardona) após a morte deste, que, por ficar sem rituais fúnebres, passa a vagar em espírito, que só Miguel vê, pela comunidade de pescadores. Priscila também é um tipo de espírito que vaga pela comunidade de “A Filha do Pescador”, rendendo risinhos e pedindo apenas o mínimo: respeito.

O título original de “A Filha do Pescador” é “La Estrategia del Mero”. Mero é outro nome para o peixe que aqui conhecemos como garoupa. Samuel virou notícia de jornal ao pescar, anos antes do retorno de Priscila, um mero gigante. Os recortes de jornal noticiando este feito foram guardados e mostram que este é o maior orgulho da vida de Samuel que, como é possível perceber apenas pela sinopse, se envergonha da filha. Ela, como um peixe que abocanha o anzol mas não é de valor, está na comunidade como uma indesejada, até que começa a ser vista com outros olhos por Miguel e pelo próprio Samuel.

“A Filha do Pescador” é uma coprodução entre Brasil, Porto Rico, Colômbia e República Dominicana. O produtor brasileiro Rodrigo Letier declara:

“É uma história muito emocionante e madura, de um jovem realizador [é o primeiro longa do diretor colombiano Edgar De Luque Jácome], que dialoga com amplas plateias porque trata de algo absolutamente universal, que é a relação entre pais e filhos. Além disso, o filme é resultado de um esforço conjunto de quatro países, um exemplo da importância das linhas de coprodução internacional do Fundo Setorial, que resultou num processo muito enriquecedor de troca de experiências”

Samuel é adepto da pesca de mergulho com arpão, que pode ser considerada uma “arte” ultrapassada. Mas mesmo assim ele sobrevive, mergulhando e voltando à tona com seu peixe espetado. Para sobreviver, ele tem outro desafio: aceitar Priscila como ela é e talvez assim estabelecer um vínculo duradouro. É pena, entretanto, que ela precise ficar “menos feminina” para ser aceita na comunidade. Sim, o filme se passa nos anos 90, mas ainda estamos longe da ampla aceitação das pessoas trans.

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