A Imensidão (2022): quando era ainda mais difícil ser você mesmo

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readJul 1, 2024

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A atriz Penélope Cruz tem uma carreira internacional de dar inveja. Além de musa do grande diretor espanhol Pedro Almodóvar, com quem colaborou mais recentemente no elogiado “Mães Paralelas” (2021), ela também atua em outras línguas além do seu espanhol nativo. Ganhadora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por “Vicky Cristina Barcelona” (2008), sua mais recente aventura se deu no cinema italiano, num filme sobre uma época em que era ainda mais difícil ser quem você realmente é.

Clara (Penélope Cruz), mãe de Andrea (Luana Giuliani), só usa maquiagem quando vai sair ou depois de chorar. Não parece ser nada disso quando Andrea a encontra toda maquiada na cozinha. Clara quer, embora nunca diga isso com palavras, ser uma mulher livre — e o filho pode servir-lhe de inspiração.

Andrea não está confuso com relação à sua identidade. Apesar da pouca idade — calcula-se, por seus hábitos juvenis e espírito brincalhão, que mal entrou na adolescência- Andrea sabe quem é. Ele diz que os pais o criaram errado, e que se sente como um alienígena. Seus pais e seus irmãos não o entendem — o irmão Gino inclusive diz que ele tem de parar de fingir ser menino. A família costuma ser o primeiro ambiente castrador para indivíduos trans, e isso acontece aqui também.

Felice (Vincenzo Amato) é o pai de Andrea, Gino e Diana. Além de ciumento para com a esposa, apesar de traí-la, ele insiste em chamar Andrea de Adri, diminutivo de Adriana, seu “dead name”, e diz que o filho está “delirando”. Felice é mau marido e mau pai — pelo menos para os padrões de hoje. Para a época em que se passa o filme, ele é um pai mais do que adequado.

Clara está dando seu melhor, mas, como muitas vezes acontece com as mulheres, o melhor ainda não é suficiente. Ela ama e parece aceitar o filho, embora se refira a ele como Adri. Por causa da época em que se passa o filme, seu marido coloca fogo na casa, mas é ela que é mandada para uma casa de repouso.

Sim, eu escrevi duas vezes “na época em que se passa o filme” porque ele é ambientado no passado — quando já existiam, sim, pessoas trans, mas muitas viviam sem se assumir ou ostracizadas pela sociedade. “A Imensidão” se passa, de acordo com as roupas e penteados, no final dos anos 60 ou início dos 70.

Depois de atravessar um canavial nas imediações de sua casa, Andrea e seus irmãos encontram um acampamento de trabalhadores, onde conhecem a menina Sara (Penélope Nieto Conti). É questão de tempo até que aconteça o primeiro beijo entre Andrea e Sara. Ao saber, por intermédio de Gino, das andanças de Andrea para além do canavial, Clara o alerta que as coisas podem ficar difíceis para o jovem casal.

Durante um jogo de cartas, conversando sobre seus filhos, Clara ouve da sogra que Andrea vive num mundo só seu e “vamos torcer” para que dê tudo certo com “ela”. Ela retruca: “estou mais preocupada com a fantasia dos adultos que creem que ainda são crianças”. A sogra, na ausência de Clara, cuida das crianças e obriga Andrea a usar um vestido, o que ele detesta.

Há números musicais que não ajudam a história a avançar, mas sim nos distraem por alguns momentos da narrativa. Eles servem como devaneios de Andrea, que imagina uma vida em família idílica, uma escola religiosa menos opressiva e a liberdade para a mãe… e para ele mesmo. Ora, os números musicais são o que mais se aproximam de sonhar acordado nas telas do cinema, então aqui são usados para sua função primordial.

“A Imensidão” é um filme autobiográfico protagonizado por uma atriz não-profissional. Trata-se da história real da adolescência do diretor Emanuele Crialese, que apostou alto todas as suas fichas escalando Luana Giuliani para o papel principal de um drama pessoal. Mas compensou: o resultado é um filme que levanta questões sobre uma época que felizmente já passou, em que era ainda mais difícil ser você mesmo. Hoje, as coisas melhoraram um pouco, mas o esforço para que a mudança continue — e nunca retroceda — passa também pelo cinema.

“A Imensidão” faz parte da programação da 8 1/2 Festa do Cinema Italiano, que vai até 03/07 em várias cidades. Confira a programação completa AQUI.

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