“A Música Natureza de Léa Freire” e as mulheres na música
Que mulheres da música brasileira você conhece? Ana Castela? Anitta? Luísa Sonza? Todas estas, claro, têm seu mérito, mas hoje trazemos uma figura da nossa música que merece ser mais conhecida, e será graças a um documentário sobre ela que estreou há pouco. Com apenas 2099 ouvintes mensais no Spotify, Léa Freire pode não ser uma superartista se comparada às citadas, mas com certeza merece o prefixo “super” antes de seu nome.
Nascida em 1957, um ano antes de sair o primeiro disco da Bossa Nova, Léa teve na mãe sua primeira inspiração musical. Aos seis anos, começou a estudar piano clássico com uma professora que a deixava improvisar durante as aulas — com esta mestra ficou estudando por uma década. Aos 16 começou a estudar violão e com o instrumento aprendeu tudo sobre harmonia.
Logo Léa começou a estudar no CLAM (Centro Livre de Aprendizagem Musical), que era diferente de um conservatório comum. Entrando na escola em seu primeiro ano de funcionamento, ela foi imediatamente convidada a também dar aulas lá. Pouco tempo depois, tocando flauta pela cidade, foi expulsa da casa da família, mas conheceu a já grande cantora Alaíde Costa. Juntas, elas fizeram parte de um projeto que levava música aos detentos das FEBEMs. Léa passou a morar com Alaíde durante dois anos, antes de ir estudar jazz em Nova York.
Léa ficou afastada dos palcos por 11 anos, enquanto trabalhava em empregos convencionais e criava o casal de filhos. Ficou doente e só melhorou com sua volta aos palcos. Mesmo longe, não parou nunca de compor. Foi no final dos anos 90 que criou a Maritaca Discos, um selo musical para lançar música instrumental brasileira. E assim mostrou, de uma vez por todas, que lugar de mulher também é na música.
Mulheres na música: uma história dissonante
A certa altura de “A Música Natureza de Léa Freire”, algumas musicistas dão seu depoimento e contam que é difícil ser mulher no mundo da música instrumental, seja como instrumentista ou cantora, embora este posto pareça dar mais status. Mas as coisas vão mudando e esta mudança, se não começou com Léa, certamente perpassa por sua trajetória, como bem aponta o diretor Lucas Weglisnki:
“Existe uma hegemonia masculina na música orquestral e instrumental. Quando a Lea começou, havia umas cinco mulheres tocando, e hoje, são entre 50 e 100, o que ainda é pouco se comparado com o número de homens na área. Lea sempre era comparada a algum homem. A ‘Tom Jobim de saias’, ou algo assim. Porém, as novas gerações estão vindo com muita força e, creio, a tendência é mudar essa realidade. A própria Lea pensa isso também”.
Léa diz que cerca de setenta por cento das pessoas que começam o primeiro ano de estudo de música são mulheres, mas só 15% delas se formam ao final do curso. As razões já conhecemos: objetificação da mulher e o velho machismo. Homens acreditam que mulheres são incapazes de manipular seus próprios instrumentos, mesmo com anos de estudo, e invisibilizam as mulheres instrumentistas, como se só pudesse haver mulheres cantoras na música.
Na música clássica, as mulheres também são minoria. A situação da mulher neste mundo foi retratada na série da Amazon Prime “Mozart in the Jungle”, que por aqui também foi exibida na TV a cabo sob o título “Sinfonia Insana”. Em certa altura da série, a oboísta Hailey (Lola Kirke) decide se tornar maestrina e passa a reger uma banda que só toca músicas compostas por mulheres.
No sétimo episódio da quarta temporada, aprendemos que o kabuki foi criado por uma mulher, mas considerado indecente, e por isso só os homens puderam fazer parte desta arte. Neste mesmo episódio, em uma competição de maestros, um jurado compara negativamente as duas maestrinas que competem, dizendo que elas regem de forma muito emocional. No mesmo episódio é dito que nunca deixam duas mulheres entre os cinco finalistas de uma competição, e que, à época, apenas quatro das 150 melhores orquestras do mundo eram regidas por mulheres.
Assim como o protagonista masculino de “Mozart in the Jungle”, Rodrigo (Gael García Bernal), Hailey também começa a ver fantasmas. Mas seus fantasmas, ao contrário dos do maestro, são de mulheres do mundo da música clássica. Ao longo da série, são mencionadas estas mulheres quase apagadas e que merecem ser mais conhecidas: Clara Schumann (pianista e esposa do compositor Robert Schumann, e interpretada pela grande Katharine Hepburn no filme “Sonata de Amor”, de 1947), Maria Anna Mozart (irmã mais velha de Wolfgang Amadeus Mozart, teve uma carreira de sucesso como pianista até completar dezoito anos, depois foi afastada dos palcos por questões de “decoro” e terminou a vida dando aulas de música), Fanny Mendelssohn (irmã de Felix Mendelssohn, compositora da época do Romantismo na música, com a maioria da obra publicada postumamente, e correspondente de Clara Schumann) e Isabella Leonarda (compositora italiana de mais de 200 peças, e primeira a compor sonatas para violino).
Quase todas as músicas apresentadas no documentário foram compostas por Léa Freire. Ela conta que muitas pessoas expressam surpresa com o fato de que músicas são compostas também por mulheres — e Léa tem na ponta da língua uma resposta para quem externa essa surpresa. Um flautista estrangeiro, Keith Underwood, coloca Léa no mesmo patamar de Tom Jobim, Milton Nascimento e Pixinguinha. Essa mulher encantadora e determinada, filmada com closes poderosos no rosto que destacam seus olhos azuis, escapa dos rótulos e luta pela valorização da música brasileira. Em resumo, uma heroína.