A primeira pornochanchada a gente nunca esquece
De chanchada eu entendo. Passei as tardes de domingo, quando tinha vinte e poucos anos, imersa no universo dos populares filmes de comédia brasileiros das décadas de 1940, 1950 e começo dos anos 1960. Familiarizei-me com Ankito, Oscarito, Grande Otelo (meu ator brasileiro favorito e aquele que considero o maior ator que este país já teve), Ronald Golias e Renata Fronzi, para citar só alguns. E, eventualmente, escrevi sobre chanchada para gringo ler. Hoje dou mais um passo para adquirir conhecimentos sobre cinema nacional. É chegada a hora de mergulhar no universo das pornochanchadas.
Confesso que não dei esse passo ainda não por falta de oportunidade — afinal, pornochanchadas estão disponíveis online, muitas inclusive no YouTube, e são constante na programação da madrugada do Canal Brasil — mas sim por puro preconceito. Este preconceito foi dissipado por um curso que fiz junto à Associação Brasileira de Críticos De Cinema, da qual faço parte. Escolhi começar com uma pornochanchada cujo título me chamou a atenção e escolhi também escrever não uma crítica comum, mas um breve ensaio sobre minha experiência, semelhante ao texto “A primeira chanchada a gente nunca esquece”, publicado no meu blog.
Mas preciso começar com uma confissão: “A Super Fêmea” não foi exatamente minha primeira pornochanchada, não da maneira como “Quem Roubou Meu Samba?” foi minha primeira chanchada. A primeira foi “Os Paqueras”, de 1969, apontado pela pesquisadora Fernanda Pessoa — diretora do filme-compilação de pornochanchadas “Histórias que nosso cinema (não) contava” (2018) — como um dos primeiros três filmes, lançados em 1969, que deram início ao ciclo da pornochanchada. Não faz muito tempo que o vi, mas de erótico havia apenas o traseiro nu de Reginaldo Faria e o que ficou mais forte na minha memória do filme foi a participação fugaz mas sempre luminosa de Leila Diniz.
“A Super Fêmea” começa de maneira mais que revolucionária: verdadeiramente reacionária numa assembleia de mulheres a favor do poder feminino e da criação de uma pílula anticoncepcional masculina, para que o fardo da prevenção da gravidez não caia apenas sobre a mulher. A questão é que a pílula já existe e foi testada com sucesso em animais, mas a maioria (83%!) dos homens teme ficar impotente com o uso. Os desenvolvedores do anticoncepcional então consultam um guru (Perry Salles) que diz que o homem brasileiro tem a vida atravessada por três mitos: a mulher, o café e o jogo. Sua solução é criar uma pílula com sabor de café (grão vaginiforme!) e que traga como prêmio a quem usar a conquista de uma mulher lendária: a super fêmea.
Começa então a busca por uma mulher “dócil, porém ardente”. Depois de recusar centenas de candidatas, o guru encontra do outro lado da rua Eva (Vera Fischer), que é raptada como devem ter sido as sabinas do mito romano. Na primeira entrevista de Eva para a imprensa, é impossível não pensar na famosa entrevista de Leila Diniz para o jornal O Pasquim. Começa assim, com Eva como garota-propaganda, uma corrida pela pílula que aumenta a virilidade de quem a toma.
Nesta comédia erótica — termo que alguns preferem usar por achar “pornochanchada” difamatório — as piadas são bem bobinhas, quase infantis — aqui incluindo uma que me fez rir, do dono da empresa de preservativos Oscar Mizinhas. O assédio é tratado como cômico, algo hoje inadmissível e que fez o filme envelhecer mal — como eu desconfio que aconteceu com a maioria esmagadora das pornochanchadas.
Preciso confessar que a trilha sonora do filme é muito boa, com direito à música de “O Poderoso Chefão” para introduzir um personagem mafioso solto na trama, e também belíssimas peças no piano. Outro destaque positivo são as referências mil: Marlon Brando, “Blow-Up: Depois Daquele Beijo” (1966), “Barbarella” (1968), Adoniran Barbosa, Copa do Mundo de 1970 — pois o país só conseguia ser campeão no futebol e na natalidade -, censura… Nada escapa a um roteiro que sabe pontualmente ser sagaz, principalmente quando critica o fato de tudo no Brasil conseguir ser vendido quando o anúncio objetifica o corpo de uma mulher — inclusive os filmes da pornochanchada.
Há representação LGBTQ+ neste filme, ainda que permeada de preconceito. Durante o desfile de mulheres sensuais em busca da super fêmea, temos uma mulher vestida com roupas masculinas, tirando as medidas das candidatas e se excitando com elas. No mesmo contexto, um examinador manda embora homens travestidos que tentavam ocupar a vaga.
Vencedora do concurso Miss Brasil 1969, Vera Fischer tinha apenas 22 anos de idade quando “A Super Fêmea” foi lançado e, conforme contou em entrevista ao programa Persona da TV Cultura, estava somente tentando fazer algum dinheiro para ganhar a vida. Dois anos depois, ao ganhar o Prêmio de Melhor Atriz no Prêmio APCA com o filme “Intimidade” (1975), ela finalmente passou a se considerar uma atriz de verdade. Desde 1972 ela era casada com Perry Salles, com quem contracenou em ambos “A Super Fêmea” e “Intimidade” e com quem teve sua primeira turnê pelos festivais de cinema da Europa.
“A Super Fêmea” foi dirigido e produzido por Aníbal Massaini Neto. Filho do produtor Oswaldo Massaini, que distribuiu “O Pagador de Promessas” (1962), Aníbal começou sua carreira como produtor em 1969, mas tem no IMDb apenas 27 títulos como produtor e quatro como diretor, no entanto sua influência nos demais filmes da chamada “Boca do Lixo” é imensurável. Na série documental “Boca do Lixo: a Bollywood brasileira”, apesar de receber agradecimento nos créditos finais, Aníbal Massaini é apenas citado pelo diretor, ator e roteirista Adriano Stuart como sendo uma pessoa “difícil”.
A diretora de arte e co-responsável pelo figurino é Lenita Perroy, que no mesmo ano dirigiu “Mestiça — A Escrava Indomável”, protagonizado por Sônia Braga.
A busca por um anticoncepcional masculino existe desde a aprovação para vendas do anticoncepcional oral feminino, lá na década de 1960. Apesar de efeitos colaterais como retenção de líquido, ganho de peso e em casos extremos trombose e entupimento de veias e artérias, a pílula foi uma revolução. A pílula masculina também seria, se os homens se curvassem aos possíveis efeitos colaterais. Pesquisas continuam em busca de um medicamento eficaz e que traga algo da igualdade demandada por nós há décadas.
Confesso que não sei ao certo o que eu esperava com minha primeira pornochanchada — logo uma que teve mais de um milhão de espectadores!Sei que um novo mundo se desnuda — por vezes literalmente — à minha frente e tudo o que tenho de fazer é explorá-lo. Que sorte a minha!