Amor à Segunda Vista: uma comédia romântica moderna

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readJul 11, 2019

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(Imagem: reprodução)

À primeira vista, o subgênero comédia romântica parece não ter muitas novidades a oferecer. Um tipo de filme que muitas vezes abusa de clichês — como os protagonistas que se conhecem e se odeiam, para só depois se apaixonarem — pode ser relegado ao segundo plano. Mas é aí que chega para mudar qualquer opinião pré-concebida um filme como “Amor à Segunda Vista”, que mistura romance com teorias de física e depende da literatura e de muita reflexão para resolver o conflito principal.

Os primeiros dez minutos de “Amor à Segunda Vista” já contam uma história de amor que poderia ali mesmo acabar com um felizes para sempre — mas não haveria o mesmo impacto. Raphaël (François Civil) é um adolescente aspirante a escritor que um dia conhece, por acaso, Olivia (Joséphine Japy), uma garota que quer ser pianista. O que acontece é amor à primeira vista. Raphaël usa Olivia como inspiração para criar a heroína de seu livro de ação e aventura, intitulado Zoltan. Olivia encontra em Raphaël um companheiro para todas as horas. Eles se beijam, namoram, se casam, ele publica seu livro, se torna um escritor de sucesso, ela ganha prêmios como pianista. E aí tem início o conflito.

Com a fama, Raphaël deixa de ser o grande companheiro e incentivador de Olivia. Ela perde competições, e o que lhe resta é dar aulas particulares de música. Um dia, após uma entrevista na televisão, Raphaël chega tarde em casa, discute com Olivia e o casamento deles fica em xeque. Tem início uma nevasca, Raphaël vai dormir e, ao acordar, descobre que está em uma realidade paralela, na qual não conheceu Olivia na adolescência. Por causa disso, ele nunca terminou seu livro, mas ela, sem ele, se tornou uma pianista de imenso sucesso. Agora cabe a Raphaël reconquistar Olivia para tentar voltar à sua realidade — e ele também deve fazer algumas escolhas vitais.

Olivia poderosíssima (Imagem: reprodução)

No passado e nas velhas obras, é a mulher que se sacrifica na relação e na carreira para fazer o casamento dar certo. Raphaël se tornou escritor de sucesso, Olivia virou professora de piano, pois sem a ajuda dele, sempre imerso em compromissos, ela precisou cuidar da casa e encontrar uma maneira de se sustentar. Historicamente, a divisão sexual do trabalho sempre foi desigual, com o trabalho doméstico — o tipo menos valorizado, considerado invisível e que não oferece remuneração — quase sempre ficando por conta da mulher.

No mundo “invertido” no qual Raphaël acorda, Olivia é uma pianista de renome e ele é professor de literatura em uma escola do subúrbio. As ocupações se invertem: ela tem reconhecimento, ele não. Essa escolha nos permite ver também o descaso com a profissão do professor — ao se tornarem professores, ambos cumprem o ridículo ditado “quem não sabe fazer, ensina”.

Em “Amor à Segunda Vista”, o poder da literatura de mudar a realidade é elevado à milésima potência. Não estamos falando do poder de catarse da literatura, mas da maneira como arte e vida real se entrelaçam e servem de inspiração uma para a outra. Sem conhecer Olivia, Raphaël é incapaz de terminar seu livro. Conhecendo-a e criando uma personagem à semelhança dela, Raphaël passa a moldar o destino da personagem baseando-se em seus sentimentos por e pensamentos sobre Olivia, e desta forma a ficção acabou moldando a realidade.

(Imagem: reprodução)

Joséphine Japy e François Civil são carismáticos e adoráveis como os protagonistas. O personagem que rouba a cena, entretanto, é Félix, melhor amigo de Raphaël, interpretado pelo versátil Benjamin Lavernhe. O ator é capaz de nos emocionar e, logo depois, nos fazer chorar de rir.

O novo mundo de Raphaël e Olivia também é nosso novo mundo. Cada vez mais temos mulheres ocupando posições de destaque, inclusive nas artes, caso de nossa protagonista, e homens não necessariamente desempregados, mas sim com empregos considerados “menores” e mesmo como donos de casa. No fundo, “Amor à Segunda Vista” também é sobre se adaptar em um mundo menos machista — e para encontrar o amor nesse novo mundo não é permitido ser um homem à moda antiga.

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